Thursday, November 3, 2011

A EDUCAÇÃO E O RESGATE DOS VALORES MORAIS E CÍVICOS EM ANGOLA

NOTAS PRELIMINARES
A moral e a cívica sempre foram uma preocupação do povo angolano. Com efeito, a nossa história pode ser compreendida como uma re-abordagem contínua dos nossos ideais morais e cívicos, enquanto seres sociais. A luta pela autoformação enquanto povo, a independência, a luta pela paz, democracia e desenvolvimento do homem angolano, podem ser citados como exemplos históricos do exercício de realização de ideais morais e cívicos.
No entanto, a nossa própria história também é mostra do quanto a moral e a cívica nem sempre gozaram do lugar que nós todos desejávamos que elas tivessem. Dum lado, pela dialéctica própria da existência humana, onde a negação contínua e a superação constante são uma realidade, doutro lado pela idealidade própria aos princípios cívicos e morais que podem ser compreendidos como sendo da dimensão da Ideia. Eles não são factos ou realidades adquiridas, mas sim ideais a alcançar.
Finalmente, e ligados aos argumentos precedentes, a moral e a cívica nem sempre foram realizadas pelo facto da própria contingência humana. Somos seres contingentes, e por isso finitos e imperfeitos. Assim, nós erramos. O nosso conflito armado, e as suas consequências, são prova da nossa imperfeição no exercício da cívica e da moral. Portanto, quando falamos da educação na recuperação dos valores morais e cívicos, estamos a falar duma realidade que nos toca enquanto angolanos aqui e agora.
Para abordar este tema, proponho quatro pontos: clarificação de conceitos; a relação entre a educação, valores morais e cívicos; a questão angolana; e os desafios (a guisa de conclusão).

I. CLARIFICAÇÃO DE CONCEITOS
Gostaria de recorrer ao método histórico para buscar a origem, a etimologia, das palavras-chaves da nossa comunicação, que são: valor, moral, cívica e educação.
Valor
A palavra valor vem do latim Valere, que significa “ser forte.” Assim, o termo valor pode ser compreendido como a qualidade e importância que nós projectamos e reconhecemos na realidade. Uma vez definidos, os valores justificam as nossas escolhas e acções. As dimensões valorativas são várias: Podemos falar de valores éticos, que têm a ver com a nossa conduta, como por exemplo a honestidade; temos valores religiosos, relacionados com a ligação do homem como o Outro (o transcendente), por exemplo, a santidade; valores estéticos, como a simetria. Existem valores políticos, como a participação cívica, etc. Sendo que os valores não o são para todos em todos os tempos e lugares, existe a possibilidade de mitigar o conflito de valores pela hierarquização dos valores. Neste sentido, a educação surge para harmonizar a diversidade de valores. A educação constitui-se como um factor chave na organização, transmissão e recuperação de valores.
Moral
A palavra moral também tem origem latina, “mor, mores.” Este termo significava para os latinos costume, carácter ou forma habitual de agir. Assim, a moral pode ser compreendida como as regras da conduta humana que radicam da sua capacidade e responsabilidade em distinguir o bem do mal. Em termos Kantianos diríamos, a moral é a dimensão prática da razão que impõe regras de comportamento e acção. Assim sendo, o valor moral indica a qualidade de princípio comportamental a partir da qual escolhemos e julgamos os nossos actos.
Cívica
A palavra cívica também vem do latim Civitas que significa cidadania romana. Daí que o objecto da cívica seja a cidadania. Com efeito, quando os latinos diziam cives, queriam dizer cidadãos, que eram distintos dos estrangeiros (que eles chamavam de peregrini). Neste contexto, a cidadania é a articulação explicativa dos direitos civis (tais como liberdades individuais e o direito a propriedade privada), direitos políticos (a possibilidade de exercer o poder) e direitos sociais (segurança económica e social) (Janoski, p. 3).
Nestes termos, o objecto da educação cívica pode ser compreendido como sendo a cidadania, que quer dizer a participação na cidade. Esta cidade está para além da polis grega de Aristóteles e doutros clássicos, (baseada na organização da sociedade) a Cidade da qual fazemos derivar a civitas de cívico, pode ser melhor compreendida, buscando a civitas de Santo Agostinho, que fundava a cidade em laços afectivos e não apenas jurídicos como se pretendia na republica latina de Cicero.
Educação
O grande consenso quanto a origem do termo educação é de que ele deriva do latim. No entanto, dali para frente, o consenso e unanimidade não é tão evidente. Com efeito, há autores que derivam o termo educação do verbo latino “educare” que significa criar ou alimentar (cfr. Enciclopédia Luso Brasileira, p. 148). Existem outros autores que, como afirma Américo Veiga preferem derivar o termo educação dum outro verbo latino “educere”, que resulta da justaposição do prefixo “ex” que significa sair de, tirar para fora, etc. e o verbo “ducere” que quer dizer conduzir. Assim, educação pode ser compreendida como o processo de condução para fora de.
A articulação que Américo Veiga faz dessas duas perspectivas etimológicas é interessante porquanto, ele assume que a educação é um processo que implica duas direcções: a direcção de dentro para fora (do lado do educando; desenvolvimento) e a outra de fora para dentro (do lado do educador; a ajuda).
Neste âmbito, apesar de ser grego, Sócrates parece ter percebido muito bem esta dinâmica dialógica do processo educativo, quando lançava as bases da mieutica, sendo, o educador, uma espécie de parteira, ou seja ginecologista -obstetra, especialista em partos. Com efeito, não é parteira que dá à luza; Ela apenas ajuda a parturiente a dar a luz. O meu colega e amigo professor, Nlandu Matondo, numa das suas conferências, também ligava esta visão socrática à de Santo Agostinho do Logoi Spermatokoi (despertar as razões que estão em sementes), e à de Lonergan (com o seu conceito de Insights, ou seja “ideias adormecidas no santuário cognitivo” do educando. (apresentação do dia 29/07/2010, CEDBES).
Nestes termos, educar pode ser compreendido como o processo de motivar o desenvolvimento da razão, que, na perspectiva de Kant, teria várias dimensões, dentre as quais a teórica, prática e a judicativa.

O PAPEL DA EDUCAÇÃO EM RELAÇÃO AOS VALORES MORAIS E CÍVICOS
O papel da educação em relação aos valores morais e cívicos é anterior ao de resgate. A educação tem um papel basilar. A educação, enquanto processo humanizante e socializante, desperta o homem para os valores morais e cívicos. Ela tem o papel primordial na manifestação da moral e da cívica. Porém ela não se limita a dar os fundamentos e descansar. É a mesma educação que é chamada a entrar em acção quando os valores morais e cívicos são julgados perdidos. Neste âmbito, o processo de educação aparece como o recuperador de valores perdidos.
Para Rafael Yus Ramos (2002), existem 4 pilares da educação do século XXI:
 Aprender a ser (incluindo a educação para a saúde, educação emocional e educação para o consumo);
 Aprender a fazer (Educação para a vida activa; desenvolver a competência para vida, ou seja conhecimento em acção);
 Aprender a conhecer (estudar, memorizar, resolver, etc.);
 e aprender a viver juntos (educação ambiental, educação para democracia, educação para solidariedade, educação intercultural, educação para a paz, educação para a igualdade, educação cívica, aceitação e respeito das normas cívicas, capacidade de desenvolver projectos comuns, etc. (in Valores escolares y educación para la cidadania, p. 33ss).
Na óptica de Américo Veigas (2005), uma boa educação moral deve abranger os seguintes aspectos:
 Sentido e opção pelo bem (identificar e escolher o bem);
 Reconhecimento da dignidade humana (com as suas liberdades e igualdades fundamentais, e para os religiosos, sendo o homem criado à imagem e semelhança de Deus).
 Respeito e promoção da vida;
 O sentido do outro;
 O sentido do bem comum e do meio ambiente;
 A vivência de algumas virtudes humanas fundamentais: Verdade, justiça, lealdade, rectidão, fidelidade, honestidade.
 O sentido da liberdade e responsabilidade;
 Abertura aos apelos da consciência para o bem e a verdade;
 Motivações positivas e não defensivas ou negativas. ex.: Agir por amor e não pelo medo (pp. 284-285).
Diante da grandeza desta tarefa, é evidente o reconhecimento de que ela não pode ser realizada apenas pela educação, se por educação nós entendemos apenas um sector do executivo. No entanto, se entendemos a educação como um processo de assumpção social, que deve ser assumido pela sociedade toda, da família aos grupos mais complexos da sociedade; aí sim, a moral é uma tarefa de educação, porque é uma tarefa da sociedade. O resgate dos valores morais e cívicos é uma tarefa da sociedade Angolana que deve ser assumido por todos individual e colectivamente de maneira contínua e continuada.

A QUESTÃO ANGOLANA
Em Angola, proponho que situemos o resgate de valores cívicos e morais dentro da grande dinâmica de reconstrução nacional. A reconstrução nacional, na minha perspectiva, é a reconstrução da razão em nós. Neste sentido, razão não é apenas discursiva ou teórica. Ela é também, como nos lembra Kant, uma razão prática, ou seja, a razão não é apenas pensamento; ela é também comportamento. Isto que dizer que apesar de sermos racionais, moralmente nós devemos querer ser racionais e comportamo-nos de maneira aceitável. Como consequência, a nossa razão prática é também activa, no sentido de agirmos civicamente de acordo com os princípios morais aceites pela nossa sociedade. Não devemos apenas querer ser razoável, mas também agir de maneira razoável, ou seja trabalhar para que os angolanos ajam de maneira cada vez mais razoável.
Muito tem sido realizado pelo executivo e os seus parceiros sociais no sentido do resgate dos valores morais e cívicos. O curriculum educativo, no seu todo revela implicitamente, e no seu sentido lato, um esforço de recuperação dos valores morais e cívicos. No entanto, esse esforço também se manifesta explicitamente e no sentido restrito pelas disciplinas como a geografia, história, organização do estado, línguas, e mais claramente com a introdução da disciplina de Educação Moral e Cívica.
A disciplina de educação moral e cívica constitui um espaço de transmissão de valores que concorrem para uma realização do homem angolano enquanto indivíduo e enquanto social. Um aspecto importante da educação moral e cívica é mesmo a sua utilidade enquanto espaço de instrução sobre os assuntos, da sociedade e do estado. Com efeito a nossa população mais jovem, e não só, pode ser algumas vezes constituída de diríamos ignorantes cívicos. Ou seja indivíduos que têm pouca informação, e compreendem muito menos, sobre os conteúdos da sociedade, dos direitos e deveres, da economia, da cultura e política; indivíduos alheios a realidade social e física envolvente.
A introdução da disciplina de Educação Moral e cívica, como disciplina autónoma, no sistema da reforma educativa, é um dos exemplos mais notáveis, embora, em princípio, todas as disciplinas contribuem para educação moral e cívica, sobretudo disciplinas como história, geografia, línguas, etc.

DESAFIOS
Apesar do trabalho educativo que tem sido feito por todos nós, os desafios são vários. Porém, podemos levantar alguns desses:
1º. Assumir e articular da melhor maneira possível, e de acordo com o nosso contexto, aquilo que afirmaria ser a dialéctica da educação cívica e moral. Com efeito, embora a escola seja um dos contextos institucionais principais para aquisição e resgate dos valores morais e cívicos, esses aprendem-se mais em exercício, ou seja na prática. Neste sentido, os princípios valorativos são lançados pela escola, mas são vividos e vivenciados na sociedade em geral que se organiza politicamente.
2º. Existe também o desafio de implementação da Reforma Educativa. A concepção e implementação da reforma educativa é um reconhecimento do executivo de que a educação, enquanto transmissora e recuperadora de valores, deve ser susceptível de reconsideração e melhoramento. Os contextos sociais mudam e a apresentação dos valores pode exigir novas estratégias, metodologias, etc. Temos todos de estar unidos para o sucesso da reforma educativa em Angola.
3º. O desafio da assumpção da transversalidade e interdisciplinaridade da Educação moral e cívica. Na verdade, a manifestação curricular (como disciplina) da educação moral e cívica implica o envolvimento de varais ciências sociais e não só. Com efeito, também as ciências ditas humanas (ou sociais) têm sempre um contributo para uma melhor compreensão da realização do homem enquanto cidadão na sociedade politicamente organizada. Para além disso, as ciências naturais também convergem para um melhor entendimento do ambiente natural no qual o homem exerce a sua cidadania consciente, porque moral e civicamente educado. Assim, a articulação do cidadão angolano da relação entre o meio ambiente (questões ecológicas) e a Sociedade (questões de desenvolvimento) é deveras importante.
4º. O desafio da Família angolana. A família, como núcleo da sociedade, é o espaço primeiro do processo educativo. Ela é a primeira escola de valores. É na família que nós começamos a despertar aos valores morais e mesmo cívicos. Com efeito, tem sido quase unânime a afirmação da crise da família moderna, e a crise da família angolana em especial. Neste sentido, a crise da família tem implicações na maneira como a recuperação educativa dos valores pode ser processada. Assim, é importante pensarmos, a nosso nível quais os mecanismos de recuperação dos valores num contexto de afirmação da crise da família. Parece-me que o caminho é, mais uma vez, dialéctico no sentido de reforço mútuo. Com efeito, na medida em que a família assumir devidamente o seu papel, melhor recuperaremos os valores cívicos e morais. Por outro lado, quanto melhor for essa recuperação dos valores morais e cívicos, melhores famílias teremos no cumprimento das suas funções como escola de valores.
5º. O desafio do Engajamento comunitário e Associativismo. A educação cívica tem uma dimensão comunitária. O voluntariado e participação dos cidadãos em projectos comunitários são essenciais. O engajamento com a comunidade é crucial. Embora não estejamos mal, podemos continuar a melhorar a desejada participação civil e moral dos nossos concidadãos. Na mesma esteira, o associativismo apresenta-se como um mecanismo de transmissão e recuperação do sentido da moral e cívica. Já Tocqueville via no associativismo o trunfo da democracia americana. Nós diríamos que associativismo é a peça chave na transmissão e recuperação do sentir moral e cívico.
6º. Finalmente, gostava de chamar a nossa atenção ao desafio da Responsabilidade social da Igreja. Sem dúvida que a Igreja em Angola tem sido uma das instituições mais interessadas na recuperação e resgate dos valores cívicos. Constatamos esse interesse e empenho nas celebrações, pregações, na criação de cursos de educação moral e cívica, etc. No entanto, reconhece-se que a crise também pode afectar as igrejas e urge criamos mecanismos de recuperação dos nossos valores religiosos fundacionais.

Thursday, August 11, 2011

REDESCOBRINDO O DIREITO NO PENSAMENTO DE JURGËN HABERMAS


Em Habermas, a problemática do direito coloca-se à partir da interrogação sobre os meios de fundação de sociedades democráticas, estáveis e justas num mundo actual pós-metafísico, pós-capitalista e sempre moderno. Para Habermas, a formação das sociedades democráticas estáveis e justas passa pela promoção duma democracia radical. O fundamento desta democracia está no direito ou no sistema legal. Com efeito, para Habermas, o direito constitui a categoria da mediação social entre a factualidade e a validade. Isto quer dizer que a democracia reenvia ao jurídico que deve ser explicitado à partir duma reconstrução racional do direito.
Sendo que vivemos num mundo onde as diferenças sociais são cada vez mais profundas, um mundo da pós-guerra fria, um mundo de guerras étnicas, nacionais e religiosas, um mundo onde as chantagens nucleares apresentam-se cada vez mais ameaçadoras, manifesta-se necessário reconstruir a ordem social.
Assim, Habermas demonstra que as filosofias anteriores à sua têm sido insuficientes nas suas abordagens das sociedades complexas e modernas. Com efeito, Kant, com a sua razão prática, conseguiu colocar bem a questão da razão, mas esta é uma razão que não comunica. Com a razão prática kantiana, a verdade coloca-se como sendo interna ao sujeito agente: o universal provém dum julgamento individual.
Do mesmo modo, Hegel, tanto nas sua lições sobre a filosofia da história quanto nos seus princípios da filosofia do direito, colocou o primado do Estado. O perigo desta posição consiste no facto dela poder levar ao totalitarismo, visto que o indivíduo não tem verdadeiramente direito à expressão, pois ele faz parte dum todo que é o Estado e é somente nele que o indivíduo é livre.
O contextualismo, defendendo a força normativa dos factos, renuncia à qualquer fundação. Nestes termos ele também não é convincente. Por sua vez, o psicologismo não satisfaz, pois ele proclama a consciência (individual) como o lugar de legitimidade.
Neste quadro, Kant, Hegel e o contextualismo são insuficientes porque suprimem a tensão existente entre a factualidade e a validade. O psicologismo – pondo a autonomia da consciência e o encerramento reflexivo do sujeito sobre si mesmo – não respeita a tensão, quer dizer a intencionalidade própria da consciência, afirmada por Husserl: “a consciência é sempre consciência de alguma coisa.”
Na esteira da crítica husserliana, encontramos também Frege e outros filósofos analíticos à quem devemos a consideração do pensamento como uma proposição que exprime alguma coisa, um sentido, e que se expõe à intercompreensão. Se a linguagem constitui um meio de compreensão, o direito é, para a sociedade, a categoria de integração social, ele é o meio da coesão social.
Contudo, nas sociedades actuais manifesta-se um certo desencanto sociológico a propósito do direito. Este parece não mais ser uma força integrativa e tende a ser substituído pelo dinheiro, a burocracia, os conjuntos sistemáticos, etc. Assim, há concepções sociológicas do direito que devem ser ultrapassadas, pois elas ignoram e suprimem a tensão essencial entre a factualidade e a validade.
Entre as concepções sociológicas do direito temos a concepção naturalista do direito. Esta assimila o direito aos costumes, hábitos e mesmo às tradições; A concepção racionalista do direito mete o acento sobre as normas em detrimento do contexto das particularidades; A concepção contratualista do direito, proposta por Locke, Rousseau, Kant, etc. considera o direito como um “epifenómeno” que vem se juntar à essência mesma do homem; A concepção marxista limita o direito à produção e à relação entre a superstrutura e a infra-estrutura, os burgueses e proletários.
Para além destas concepções sociológicas do direito, há uma concepção estruturalista do direito, proposta por Niklas Luhmann. Para este autor, visto que vivemos num mundo quebrado, um mundo “sans feu ni lieu”, uma sociedade pluralista, o direito é o único meio de integração social. Contudo, segundo Habermas, em Niklas Luhamnn, a validade do direito permanece interna; ele considera o direito como um sistema autónomo e autopoiético. Uma tal concepção suprime também a tensão entre a factualidade e a validade.
Para Habermas, não são somente as concepções sociológicas que eliminam a tensão entre a factualidade e a validade. Com efeito, há também uma concepção filosófica do direito que se manifesta insuficiente. É o caso de John Rawls. Com efeito, a teoria da justiça deste autor deve ser distinguida em dois níveis que o próprio John Rawls confunde: há o nível da aceitabilidade e o nível da aceitação. A teoria da justiça de John Raws pode ser válida ao nível da aceitabilidade, mas isto não significa que ela seja aceite. Ela deve passar pelo crivo da discussão. Para Habermas, John Rawls ignora que a passagem da aceitabilidade à aceitação implica o princípio D (princípio da discussão): “são válidas estritamente as normas de acção sobre as quais todas as pessoas susceptíveis de ser implicadas duma maneira ou doutra poderiam meter-se de acordo enquanto participantes à discussões racionais.” Assim, para Habermas, não se deve suprimir a tensão entre a factualidade e a validade. Para o nosso autor, a validade do direito reside na razão comunicacional. Compreendendo o direito como sendo ao mesmo tempo um sistema de saber e um sistema de acção, ele pensa que a legitimidade do direito é fruto da discussão e que a relação entre o direito e a moral não deve ser concebida em termos de oposição ou em termos de repetição. Com efeito, é preciso ir para além mesmo de toda inspiração platónica que subordina o direito à moral e vice-versa. Os que agem desta maneira estabelecem uma hierarquia entre o direito e a moral. Ora, para Habermas, estes dois aspectos da realidade humana são equi-primordiais, quer dizer o direito e a moral são “co-originais”. Logo, não há diferença per se, a única distinção consiste no facto do direito ter força institucional enquanto a moral ser mais de uma força interior.
Neste sentido, Habermas propõe um novo paradigma do direito que retoma e ultrapassa os dois paradigmas que levaram o direito à uma crise. Com efeito, o paradigma liberal do direito tende à privilegiar os direitos dos indivíduos em detrimento dos direitos sociais. Da mesma maneira, o paradigma do Estado providência privilegia os direitos sociais em detrimento das liberdades individuais. Estes dois paradigmas criam um abismo entre o privado e o público.
Assim, Habermas propõe o paradigma processualista do direito. Este paradigma funciona como uma circularidade entre o privado e o público, promovendo a inclusividade. Com este paradigma, Habermas ultrapassa o modelo da justiça substantiva e propõe a justiça processualista.
Esta concepção do direito torna possível uma política deliberativa caracterizada por: afluxo de informações pertinentes, compromissos, regras de discussão racionais, submissão de tudo à uma discussão racional que leva à entendimentos, formação da opinião e vontade política através da discussão, intersubjectividade superior, poder comunicacional, vasta rede de consenso, sociedade civil e espaço público desempenhando o papel despertador e de problematização das situações da periferia, etc.
Quanto à nós, pensamos que a teoria de Habermas pode promover efectivamente a soberania popular e assim abrir o caminho à uma democracia radical caracterizada pela discussão racional manifesta no debate público, como o autor defende. Isso se torna um desafio para algumas sociedades actuais, mormente algumas africanas onde o poder dificilmente se emancipa e se apoia sobre uma legalidade constitucional que algumas vezes não é legítima porque não é fruto da aceitação que surge duma discussão alargada à toda sociedade. Mas, olhando para a nossa realidade, esta teoria poderia acusar um certo grau de utopia – porquanto a tecnicidade, que com o tempo envolveu a linguagem do debate político, infelizmente não está ao alcance de todos e os poucos que a alcançaram dificilmente dizem claramente a referência do seu discurso – se ela enquanto teoria filosófica não estivesse marcada, à meu ver, pela qualidade da IDEA, compreendida como um objectivo à alcançar, para o qual caminhamos, mas que podemos não atingir, consolando-nos a certeza da aproximação paulatina ao ponto desejado.


José Abel Moma

A LIBERDADE NO PENSAMENTO POLÍTICO DO FILÓSOFO JOHN RAWLS E A SUA RELAÇÃO COM A INTUIÇÃO DE HANNAH ARENDT

INTRODUÇÃO

Na sua obra intitulada Liberalismo político, John Rawls tenta articular e tirar as consequências filosófico-políticas da questão concernente a possibilidade da existência duma sociedade justa e estável, constituída de cidadãos livre e iguais, embora profundamente divididos entre eles por causa das suas doutrinas compreensíveis e razoáveis (morais, filosóficas e religiosas), mas incompatíveis entre elas. Segundo Rawls, esta questão prende-se com o problema da justiça política. É assim que o Liberalismo político situa-se na esteira duma outra obra Teoria da justiça, onde Rawls desenvolve uma teoria da justiça como equidade. Esta, ultrapassando o utilitarismo, propõe uma concepção deontológica da justiça que afirma a prioridade do justo sobre o bem e define alguns princípios de justiça, visando a constituição duma “estrutura de base” social justa: o respeito das liberdades fundamentais; a igualdade de oportunidades e o princípio da diferença. Embora os tenha retrabalhado ulteriormente, na sua obra Teoria da justiça, Rawls apresenta estes princípios da seguinte maneira:
Em primeiro lugar: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais alargado de liberdades de base iguais para todos que seja compatível com um mesmo sistema de liberdades para os outros
Em segundo lugar: as desigualdades sociais e económicas devem ser organizadas de tal sorte que, ao mesmo tempo, (a) possamos razoavelmente esperar que elas possam ser vantajosas para cada um e (b) que elas sejam ligadas à posições e funções abertas à todos.
Na primeira lição, « ideias fundamentais », da primeira parte, « liberalismo político: contexto filosófico», da sua obra Liberalismo político, Ralws empreende uma reflexão sobre a compreensão política da pessoa e faz um estudo a propósito da concepção de pessoa livre. É à partir desta reflexão que quisemos extrair a significação do conceito de liberdade em Rawls, no seu contexto de reflexão em filosofia moral, política e social. Quisemos ler na obra deste autor o intuito de propor um quadro político e social onde os seres humanos possam exercer a sua liberdade. A proposição deste quadro não seria possível sem uma concepção prévia da liberdade humana. Esta será, para nós, o objecto de estudo deste artigo que apresentamos.
I. CLARIFICAÇÃO CONCEPTUAL E ARTICULAÇÃO DO ARTIGO
A concepção política rawlsiana define a pessoa como todo homem capaz de ser, durante toda a sua vida, um membro normal e plenamente cooperante da sociedade. A “pessoa é um ser que pode ser cidadão, quer dizer um membro normal e plenamente cooperante da vida social durante toda a sua existência.” Para compreender esta concepção, parece-nos imperioso, primeiramente dar conta da significação que Rawls dá ao conceito sociedade. Para este autor, a sociedade “é um sistema equitativo de cooperação entre as pessoas livres e iguais que são tratadas como membros plenamente cooperantes da sociedade durante toda a sua vida.” Esta definição da pessoa e da sociedade em Rawls apresenta-nos a pessoa como essencialmente um ser cooperante. O pano de fundo desta concepção encontra-se identificado com uma filosofia política que se situa na tradição do contrato social. Com efeito, para Rawls, a pessoa concebida como ser cooperante, é constituída por duas faculdades da personalidade moral: a capacidade de ser razoável e a capacidade de ser racional.
A faculdade de ser razoável consiste na capacidade de respeitar os termos equitativos da cooperação. Estes compreendem substancialmente as ideias de reciprocidade e de mutualidade. Mais precisamente, ser razoável significa ser capaz dum sentido da justiça, isto significa que a pessoa humana deve ser capaz de ter uma compreensão dos princípios de justiça, para os aplicar e deixar-se motivar por um desejo eficaz de acção à partir dos mesmos princípios e de acordo com eles enquanto termos equitativos de cooperação em sociedade.
A faculdade de ser racional é a capacidade de formar e de manter uma concepção do bem. Uma concepção do bem é a ideia que a pessoa tem a propósito duma vida humana que merece ser vivida, quer dizer a representação duma vida boa. Isto compreende um sistema definido de fins e de finalidades que podem ser prosseguidos individualmente ou colectivamente como objectivo de engajamento e de fidelidade. A concepção do bem comporta também a visão do mundo e da relação que a pessoa aí mantém.
Rawls propõe-nos uma concepção política da pessoa. Assim, ele apresenta-nos três aspectos da pessoa política livre. É livre aquele que:
- Possui a faculdade moral de formar uma concepção do bem;
- É fonte de revindicações válidas que se autenticam elas mesmas;
- É capaz de assumir a responsabilidade dos seus fins.
A partir destes princípios, podemos desenvolver os três elementos que constituem a liberdade, em relação à pessoa, no Liberalismo político de John Rawls.

I.1. A FACULDADE MORAL DE FORMAR UMA CONCEPÇÃO DO BEM

“Os cidadãos são livres no sentido em que eles consideram que eles mesmos, com toda outra pessoa, possuem a faculdade moral de formar uma concepção do bem.” Do seu ponto de vista, a liberdade requer o reconhecimento do direito da pessoa à ser considerada como independente de toda concepção particular do bem e consequentemente independente também do sistema de fins últimos que esta concepção compreende. A independência do indivíduo de toda concepção particular do bem decorre do reconhecimento da pessoa humana como sujeito duma autonomia racional. Esta é a prerrogativa da qual usufrui a pessoa humana enquanto ser racional, quer dizer enquanto ser que concebe uma vida boa. A autonomia tem aqui o sentido de aptidão a poder governar-se à si mesmo, a poder propor-se uma lei racional de conduta, etc. Assim, a pessoa humana é livre na medida em que ela pode efectivamente formar, rever e seguir, duma maneira racional, a sua própria concepção do bem. A formação duma concepção do bem pode também significar aqui a adesão ou identificação, sem nenhuma obrigação social, à uma concepção do bem já existente e partilhada.
A formação duma certa concepção do bem num momento dado da vida não impede a revisão desta concepção. A revisão ou reconsideração das concepções do bem pode ajudar o ser humano a confirmar a racionalidade das suas perspectivas, objectivos ou finalidades, e, se necessário, mudá-las. Daí a pessoa humana, pelo facto mesmo de ser livre, não está ligada à prossecução da concepção que ela formou ou à qual ele aderiu num momento dado da sua vida. Isto é devido ao que Rawls chama “identidade pública ou institucional”.
A identidade pública é aquela que é definida e descrita pela lei fundamental dum Estado, definindo os direitos e os deveres fundamentais da pessoa humana enquanto cidadã. Assim, por exemplo, a conversão à uma religião ou a mudança de religião não toca nem modifica a identidade constitucional duma pessoa que, ao contrário, permanece a mesma que antes.
Para além da identidade constitucional existe a identidade não-institucional ou moral. Esta é constituída pelos objectivos, finalidades e compromissos mais profundos dos cidadãos. Os objectivos e os compromissos dos cidadãos podem ser políticos ou não-políticos. Os objectivos políticos compreendem os valores da justiça política que os indivíduos podem ver realizados nas instituições políticas e nos programas sociais. Os objectivos e os compromissos não-políticos são assumpções dos valores da vida não-pública composta também pelos fins das associações às quais os indivíduos pertencem. Assim, os objectivos e os compromissos políticos e não-políticos determinam, influenciando o modo de vida dos indivíduos, quer dizer, a maneira como os indivíduos concebem o que eles fazem e realizam no contexto social.
Uma mudança é possível para a pessoa humana, quanto a sua identidade moral, mas isto não implica a mudança da sua identidade pública ou constitucional. No quadro da identidade pública ou constitucional, a conversão não encontra pertinência. O que pode acontecer é a mudança da lei fundamental que define os direitos e deveres fundamentais dum cidadão.
O desenvolvimento deste primeiro elemento da liberdade nos revela já o princípio da igualdade com a qual a liberdade se relaciona. Com efeito, os cidadãos que se consideram (como) livres o fazem enquanto eles consideram também os outros como possuindo a mesma faculdade moral de formar e prosseguir uma concepção do bem. Isto permite aos indivíduos de emitir as revindicações visando o progresso das suas concepções do bem.

I.2. FONTE DE REVINDICAÇÕES VÁLIDAS QUE AUTENTICAM ELAS MESMAS

A liberdade prende-se com as reclamações que as pessoas humanas fazem em relação às instituições afim de fazer progredir a sua concepção do bem. Assim, os cidadãos são livres “enquanto fontes de revindicações válidas que se autenticam elas mesmas.” A pessoa humana, sendo cooperante, é capaz de ter não somente uma concepção do bem, como também o sentido da justiça, quer dizer, ela é capaz de compreender, aplicar e agir a partir da concepção política da justiça que define os termos equitativos da cooperação. É no quadro desta concepção pública da justiça que a pessoa humana exerce a sua liberdade, exprimindo as suas revindicações em relação às instituições existentes para melhorar a sua concepção do bem.
A expressão de revindicações pode também se manifestar pela emissão de proposições. Com efeito, a pessoa humana é livre na sociedade, quando ela é capaz de propor, de dar a sua opinião a propósito das instituições existentes. As pessoas humanas, assim livres, consideram que as revindicações que elas fazem têm um valor nelas mesmas, enquanto elas provêm dum ser politicamente cooperante, gozando das duas faculdades já referidas.
É importante notar que este segundo aspecto da liberdade, como os outros, não é efectivamente exercido senão nas sociedades democráticas, tendo uma concepção política da justiça como equidade. Pois, numa outra sociedade, com uma concepção política diferente, as revindicações feitas pelos indivíduos não têm valor nelas mesmas. Assim, por exemplo, numa sociedade onde a escravatura é permitida, esta é uma condição que define a morte social do indivíduo. Com efeito, o escravo é um ser humano que não é considerado como fonte de revindicações em relação às instituições, pois esta prerrogativa lhe foi negada pelo facto mesmo de não ser livre.

I.3. A CAPACIDADE DE ASSUMIR AS RESPONSABILIDADES DOS SEUS FINS.

Este último aspecto está estritamente ligado à concepção rawlsiana da pessoa e da sociedade. Com efeito, as pessoas humanas são consideradas como seres capazes de se comprometer na cooperação social. Elas podem, consequentemente, assumir a responsabilidade dos seus fins. Seres cooperantes, numa sociedade cooperativa, as pessoas humanas podem também ajustar os seus fins, afim de poderem ser realizadas pelos meios que elas podem razoavelmente esperar obter como fruto de suas contribuições mútuas. Daí, as pessoas humanas são livres “em razão das suas capacidades de assumir a responsabilidade de seus fins, o que afecta a maneira como as suas diversas revindicações são avaliadas.”
Pensamos que esta característica da liberdade é particularmente ligada ao que Rawls chama “autonomia completa” em relação à “autonomia racional”. Com efeito, esta é a capacidade de agir a partir da faculdade da pessoa humana enquanto ser racional. Mas, esta autonomia não é suficiente para a realização da pessoa humana racional e razoável. À autonomia racional é preciso juntar a autonomia completa. Esta, mesmo compreendendo a capacidade de ser racional, é a capacidade de melhorar e de fazer progredir a sua concepção do bem duma maneira compatível com o respeito dos termos equitativos da cooperação: a reciprocidade e a mutualidade. Na sociedade onde os indivíduos são livres, cada um pode contar com o sentido da justiça do outro, orientar e revisar os seus fins à luz do que todos esperam em matéria de bens primários.
Deste ponto de vista, Rawls desenvolve cinco (5) categorias de bens primários: as liberdades de base, que são as condições institucionais subjacentes necessárias ao desenvolvimento e ao exercício consciente das duas faculdades morais. Elas são indispensáveis para proteger um certo número de concepções do bem nos limites da justiça pública; a liberdade de movimento e a livre escolha da sua ocupação num quadro de possibilidades diversas; os poderes e as prerrogativas das funções e dos postes de responsabilidade; as entradas/retornos e a riqueza; as bases sociais do respeito de si mesmo, necessárias para que os indivíduos tenham um sentido real do seu próprio valor enquanto pessoa e para que eles possam ser capazes de exercer as suas faculdades morais, e de fazer progredir os seus fins confiantes neles mesmos.

CONCLUSÃO

Quisemos explorar a concepção rawlsiana da liberdade. Esta pode ser compreendida como a faculdade humana de formar, revisar e prosseguir uma concepção do bem melhorando-a pelas revindicações válidas que se autenticam elas mesmas e realizando-as através de meios que podemos razoavelmente esperar obter da contribuição de todos os membros da sociedade.
A concepção rawlsiana da liberdade tem alguns traços comuns com a compreensão que Hannah Arendt tem da liberdade:
Primo, tanto para John Rawls como para Hannanh Arednt, a liberdade é do domínio político e dos “negócios humanos”. «A questão da política e o facto que o homem possui o dom da acção deve sempre ser apresentado ao nosso espírito quando nós falamos do problema da liberdade.»
Secundo, a liberdade é compreendida pelos dois autores, cada um na sua perspectiva, como um elemento necessário para que os homens possam viver juntos numa organização política. Hannah Arendt afirma que a liberdade, marcada pelo seu aspecto essencial da virtuosidade de execução, tem necessidade dos outros homens diante dos quais ela possa aparecer, se manifestar, quer dizer ela precisa dum espaço público. Este aspecto do espaço público é também assinalado por Rawls quando ele compreende a pessoa humana como ser cooperante, e a sociedade como sistema equitativo de cooperação entre pessoas livreS e iguais.
Notamos também que os dois autores refutam a identificação da liberdade ao livre arbítrio. Isto quer dizer que para os dois autores a liberdade é mais da ordem da acção e da palavra. O homem livre é aquele que age, que começa alguma coisa nova, que forma, revisa e prossegue uma concepção do bem; aquele que se mete de acordo com os princípios equitativos de justiça.
Apesar dos traços comuns explorados, que põem a liberdade no contexto da relação do ser humano com outrem, pensamos também que os dois autores se encontram em perspectivas e abordagens filosóficas diferentes:
John Rawls situa-se numa perspectiva liberal moderada e é levado por uma preocupação de propor uma teoria filosófico-política sobre a possibilidade duma sociedade justa e livre em condições marcadas por conflitos doutrinais profundos. É lá um retorno ao conceito da tolerância diante do pluralismo, afirmando a possibilidade de ser livre, apesar de nossa condição pluralista. Aí se apresenta o paradoxo da existência humana: liberdade e condição.
Hannah Arendt, por sua vez, pode ser situada numa perspectiva mais fenomenológica. Na sua abordagem há um retorno ao sentido mesmo original do fenómeno liberdade. Ela faz uma análise da manifestação da liberdade e tenta explicitar esta experiência tendo em conta o seu paradoxo em relação às suas condições. Num debate quanto a liberdade política e a liberdade interior, Hannanh Arendt demonstra-nos que o campo original da liberdade é a política.

José Abel Moma



John RAWLS, Théorie de la justice, Seuil, 1987, Paris, p. 91. «[En premier lieu: chaque personne doit avoir un droit égal au système le plus étendu de libertés de bases égales pour tous qui soit compatibles avec le même système pour les autres.
En second lieu : les inégalités sociales et économiques doivent être organisées de façon à ce que, à la fois, (a) l’on puisse raisonnablement s’attendre à ce qu’elles soient à l’avantage de chacun et (b) qu’elles soient attachées à des positions et à des fonctions ouvertes à tous.]»
* As traduções aqui apresentadas são da liberdade e responsabilidade do autor do artigo.
Idem, Libéralisme politique, PUF, 1995, Paris, p.43 «Personne est un être qui peut être citoyen, c’est-à-dire un membre normal et pleinement coopérant de la vie sociale pendant toute son existence. »
Ibidem, p. 33 «Est un système équitable de coopération entre les personnes libres et égales que l’on traite comme des membres pleinement coopérants de la société pendant toute leur vie.»
Ibidem, p. 55 “Les citoyens sont libres en ce sens qu’ils considèrent qu’eux-mêmes, comme toute autre personne, possèdent la faculté morale de former une conception du bien.”
Ibidem, p. 56 “l’identité publique ou institutionnelle”.
Ibidem, p. 58 “En tant que sources de revendications valides qui s’authentifient elles-mêmes.”
Ibidem, p. 60 “En raison de leur capacité à assumer la responsabilité de leurs fins, ce qui affecte la manière dont leurs diverses revendications sont évaluées.”
Hannah ARENDT, La crise de la culture. Huit exercices de pensée politique, Galllimard, 1972, Paris, p. 189. “La question de la politique et le fait que l’homme possède le don de l’action doit toujours être présenté à notre esprit quand nous parlons du problème de la liberté”.

A VIOLÊNCIA E O SACRIFÍCIO NAS COMUNIDADES PRIMITIVAS E NAS SOCIEDADES MODERNAS

INTRODUÇÃO

No presente artigo propomo-nos abordar a questão da violência e do sacrifício nas comunidades primitivas e nas sociedades modernas. A nossa reflexão será sustentada pelo sistema antropológico-fenomenologico de René Girard. Com efeito, este autor, que toma a sério a significação etimológica do termo sacrifício – “fazer sagrado”, pensa que a violência encontra o seu fundamento no carácter mimético do desejo.
Nesta perspectiva, o ser humano, enquanto sujeito, deseja não o objecto em si, mas o objecto enquanto desejado por um outro sujeito, ou seja estamos diante duma imitação de apropriação: eu, enquanto sujeito, desejo este objecto porque tu, enquanto sujeito, também o desejas. O desejo do objecto desejado por outrem é ao mesmo tempo sugerido e interdito. Deste modo, entre os dois sujeitos estabelece-se uma relação de rivalidade mimética. A evolução desta rivalidade leva à crise mimética, caracterizada pelo desaparecimento prático do objecto em si, pois já não se deseja o objecto, mas o desejo do outro.
A crise mimética que se instala na comunidade é uma séria ameaça à sobrevivência da mesma, pois nestas circunstâncias a violência tem todas as condições para se generalizar.
Diante desta ameaça, surge a solução do sacrifício. Com este, a violência é transferida para um bode expiatório que cataliza sobre si a culpa de todos os males da comunidade.
Seguindo esta perspectiva girardiana, queremos no presente artigo, comparar o sistema sacrificial primitivo com o sistema judiciário moderno no intuito de afirmar, sem pretensão redutiva, o carácter preventivo dum e o cunho curativo doutro.

VIOLÊNCIA, SACRIFÍCIO E JUSTIÇA

Na sua reflexão sobre o sacrifício, René Girard constata que em diversas sociedades dá-se uma dupla dimensão ao sacrifício: ele é ao mesmo tempo legítimo e ilegítimo, uma coisa santa e também um crime (violência). Isto leva o autor a colocar a questão atinente a relação entre o sacrifício e a violência. Girard começa por fazer uma análise da expressão “violência irracional”. O que é que esta expressão significaria quando se colocasse a possibilidade da violência não carecer de razão? Diante desta possibilidade, a expressão “violência irracional”, ao menos, significaria que as razões da violência não devem nunca ser tomadas a sério. Para além disso, a violência insaciada encontra sempre uma vítima sobressalente – bode expiatório. Esta atrai a violência somente por causa do seu carácter vulnerável. Há aqui um processo de substituição. Este processo leva-nos a pensar. Assim, Girard coloca a hipótese do sacrifício ritual estar baseado numa substituição de seres – cuja morte não desejamos – por vítimas animais. Girard pensa que a sua hipótese encontra-se confirmada pelos dados etnológicos modernos e assim o sacrifício pode ser explicitado com a ajuda da hipótese da substituição.
No sacrifício existe sempre uma vítima escolhida. As relações entre a vítima de iure e a vítima de facto não são marcadas pela culpabilidade ou pela inocência. O que há é um desvio (uma transferência) duma violência perturbadora da existência e das relações dos membros da comunidade para uma vítima relativamente indiferente, uma vítima sacrificável. O animal sacrificado impede os contactos directos que poderiam arrastar a violência entre os membros da comunidade. Esta substituição torna possível uma certa deslocação que faz com que a violência possa perder de vista o primeiro objecto visado. O sacrifício, compreendido desta maneira, tem uma dimensão colectiva. O sacrifício protege a comunidade inteira da sua própria violência desviando-o em direcção de vítimas que lhe são exteriores.
O sacrifício restaura a harmonia necessária à existência da comunidade. Ele tem a tarefa de dominar e canalizar numa boa direcção as substituições que se impõem. Com efeito, quando a violência não é satisfeita, ela acumula-se e retém-se até explodir e espalha-se com efeitos indesejáveis e inesperados. Deste modo, na abordagem de René Girard descobre-se uma interpretação do sacrifício como violência de substituição. Esta hipótese, que o autor chama “intuição real”, toma a violência interna das comunidades humanas como uma chave de compreensão tanto do religioso como do comportamento humano: “Se se aborda o sacrifício por este aspecto essencial, por esta via real da violência que se abre diante de nós, apercebe-se que ele não é realmente estrangeiro à nenhum aspecto da existência humana, nem mesmo da prosperidade material.”
Embora geralmente as vítimas de substituições sejam animais, elas também podem ser homens. Nestes casos há uma categorização operada pela comunidade que determina algumas categorias de seres humanos que podem ser imolados para proteger outras categorias.
A aproximação que Girard faz entre as vítimas animais e as vítimas humanas permite-lhe compreender os critérios segundo os quais as sociedades operam a escolha das suas vítimas.
Estudos etnológicos e sociológicos apresentam-nos o inventário das vítimas: os prisioneiros de guerra, os escravos, as crianças, os adolescentes não casados, os deficientes físicos, os rejeitados da sociedade (o pharmakos grego) e, em certas comunidades, o rei. O denominador comum desta lista é primeiramente o facto das vítimas serem tiradas de categorias sociais exteriores ou marginalizadas, que nunca podem ter na / com a comunidade o mesmo tipo de relações que têm os outros membros da comunidade. Pela sua posição social, o rei também é isolado dos outros membros da comunidade. Assim, lá onde os outros marginalizados escapam à sociedade pelo baixo, o rei escapa pelo alto.
A ausência de proximidade entre a vítima e a comunidade permite que a violência sofrida pela vítima não despolete represálias doutros indivíduos que seriam os seus próximos. O sacrifício serve para apaziguar as violências intestinais que se manifestam sob forma de vingança. A vingança atrai sempre uma outra vingança de tal maneira que ela pode se estender ao conjunto da comunidade, constituindo-se num processo interminável. Tendo em conta que a multiplicação da vingança mete em risco a vida da comunidade, em todas as sociedades ela é objecto duma interdição estrita.
Podemos dizer que a vingança é um acto de represália pelo qual punimos um crime (muitas vezes um assassínio). Assim, a vingança manifesta o horror que os seres humanos sentem diante do assassínio (ou dum outro mal feito ao próximo). Daí, a obrigação que os homens se impõem de vingar os próximos é a afirmação da obrigação suprema de não matar ou fazer mal ao próximo. Mas, se a vingança, pretende reparar um crime, ela também comete um outro e entra, desta maneira, num ciclo vicioso.
As comunidades primitivas são conscientes desta realidade da vingança. Elas sabem que a vingança não pode conter a violência (o crime), pois ela é também violenta (criminosa). Assim, as comunidades primitivas procuram “medidas preventivas” que podem se resumir no sacrifício. Este é um instrumento eficaz de prevenção na luta contra a violência. O sacrifício é o acto que polariza e atrai as tendências agressivas e violentas sobre as vítimas reais ou ideais que não têm a sorte de ser vingadas. Assim, quanto mais grave se apresenta a vingança em potência, mais preciosa deve ser a vítima.
As sociedades modernas encontram-se diante da mesma realidade da violência e da vingança sempre possível. Ao contrário do sistema preventivo próprio das comunidades primitivas, as sociedades modernas erigiram um sistema curativo que afasta o ciclo vicioso da vingança. Com efeito, estas sociedades constituíram instituições que limitam o exercício da vingança. Estas instituições formam o sistema judiciário que evita a ameaça do ciclo da violência. Na realidade, o sistema judiciário não impede a vingança, contudo ele domina-a e limita-a à represálias únicas que são exercidas por uma autoridade soberana e especializada neste domínio. Assim, o sistema judiciário, embora torne possível a violência, corta a possibilidade dum ciclo vicioso.
O sistema penal, no seu princípio de justiça, não é diferente do princípio da vingança concernente a reciprocidade violenta e à retribuição. A diferença entre os dois casos consiste no tipo de ordem social, pois a vingança executada pela autoridade judiciária não pode mais ser vingada e o risco da escalada do mal é reduzido.
Através da análise que acabamos de fazer a propósito das comunidades primitivas e das sociedades modernas, vemos que o sacrifício, e o rito em geral, desempenha um papel essencial nas comunidades primitivas ameaçadas pelo ciclo da vingança, mas desprovidas do sistema judiciário modernamente organizado.
No entanto, o que chama atenção é o facto de que lá onde se instala o sistema judiciário modernamente organizado, o sacrifício enfraquece e dele resta apenas uma forma quase vazia. Geralmente, o homem moderno apreende o sacrifício no seu estado de definhamento. Esta apreensão dá-lhe a ideia segundo a qual as instituições religiosas e sacrificiais não têm nenhuma função real e importante na sociedade. Para Girard, esta ideia é compreensível uma vez que o homem moderno, com as suas instituições modernas, supõe que não tem necessidade do religioso para resolver um problema cuja existência lhe escapa. Com efeito, para o homem moderno, o ciclo da vingança enquanto problema social não existe. Assim, a solução [judiciária] lhe dissimula o problema e o apagamento do problema lhe dissimula o religioso enquanto solução.
Pelo contrário, na comunidade primitiva o homem, consciente dos males que a violência pode implantar na comunidade, sabe que estes males são de tal maneira grandes que os remédios que ele poderia utilizar seriam, no melhor dos casos, aleatórios. Assim sendo, ele opta pela prevenção. “O domínio do preventivo é antes de tudo o domínio religioso. A prevenção religiosa pode ter um carácter violento. A violência e o sagrado são inseparáveis”.
Eis que a última expressão, aqui utilizada por Girard, faz justiça ao título da sua obra A violência e o sagrado. Com efeito, no sacrifício, a violência tem uma dimensão religiosa (sagrada). O sagrado nos protege da violência embora se manifeste também como violência.
Quando não há mais sagrado, quer dizer a transcendência que define uma violência legítima e que assegura a sua diferença da violência ilegítima, o legítimo e o ilegítimo da violência são entregues à confusão da opinião de cada um. Não há mais diferença entre a boa violência e a má violência. “Só uma transcendência, fazendo crer à uma diferença entre o sacrifício e a vingança, entre o sistema judiciário e a vingança, pode enganar duma maneira sustentável a violência.”
René Girard pensa que a primazia que as comunidades primitivas concedem ao “preventivo” em relação ao “curativo” não é somente da ordem do religioso. Pois, nas comunidades primitivas, os homens não têm a experiência do travão automático e omnipresente das instituições estatais que permitem ao homem moderno passar impunemente por cima dos limites interditos aos primitivos. Os comportamentos religiosos e morais visam a não-violência na comunidade pelo meio paradoxal da violência. O sistema religioso primitivo ordena a violência e canaliza-a, utilizando-a contra toda outra forma de violência ilegítima; com o sacrifício, a violência profana faz-se sagrada, pura e reconciliadora.
Do estudo feito sobre os diversos sistemas que os homens erigiram para se defender contra o ciclo interminável da vingança, Girard apresenta-nos três categorias:
1. Os meios preventivos que se traduzem nos desvios sacrificiais do espírito de vingança;
2. As adaptações e entraves à vingança, como as composições, duelos judiciários, etc. Nestes casos, a acção curativa é ainda precária;
3. O sistema judiciário cuja eficácia curativa é sem igual.
Em relação à questão da violência, estas três categorias revelam-nos como o homem tem pouco a pouco substituído o sistema religioso pelo sistema judiciário. Neste, a vítima é a culpada, e sobre ela recai uma violência definida pela autoridade, de tal maneira que toda a possibilidade de resposta é afastada. Contrariamente, o sistema primitivo desvia-se do culpado, ele escolhe uma vítima expiatória, porque as pessoas temem o facto de alimentar a vingança. A este propósito, Girard faz referência à Lowie que, na sua obra Primitive Society declara que “ «Os Chukchi procuram muitas vezes evitar uma querela imolando um membro da família.»” Como compreender este absurdo? A razão que resulta deste procedimento, na perspectiva girardiana, é simples: imolando não o culpado, mas um dos nossos próximos, evita-se a reciprocidade vingativa, pois se se fizesse do culpado uma vítima, cumprir-se-ia o mesmo acto que reclama a vingança e consequentemente obedecer-se-ia rigorosamente as exigências do espírito violento. Para aclamar as paixões despoletadas pelo assassínio, é preciso opor-lhe um acto que, seja pelo mais ou pelo menos, não se assemelhe à vingança desejada pelo adversário. Assim, o acto deve assemelhar-se ao mesmo tempo à punição judiciária e ao sacrifício sem se confundir com um ou com o outro. É o caso da solução Chukchi. O sistema moderno (judiciário) é mais adequado ao princípio da vingança, pois ele castiga e pune o culpado. Desta maneira, ele racionaliza a vingança, cura-a e assim acredita secundariamente prevenir a violência. Pelo contrário, o sistema primitivo (religioso) procura impedir a vingança desviando-a para um outro objecto que a possa amortecer.
Apesar da sua eficácia, o sistema judiciário tem a mesma função que o sacrificial. Porém, há um progresso operado pelas sociedades modernas. Este progresso é técnico: elas constituíram autoridades judiciárias e penais duma independência soberana e que possuem um monopólio absoluto sobre a violência. Tanto no sistema primitivo como no sistema moderno é a violência que dá aos homens a possibilidade de moderar a sua violência. Efectivamente, “só um elemento fundador único e que deve ser chamado religioso”, só a transcendência dum sistema reconhecido por todos, pode garantir a eficácia preventiva ou curativa, fazendo a diferença entre a violência legítima e a violência criminal, evitando o ciclo vicioso da violência.
Com efeito, há uma identidade positiva entre a vingança, o sacrifício e a penalidade judiciária. É pelo facto destes fenómenos serem idênticos que eles têm a tendência, em caso de crise, de cair na violência indiferenciada.
O sacrifício é susceptível de perder o seu carácter de violência boa e legítima. Neste caso, a substituição perturba-se e os seres que ela deveria proteger tornam-se suas vítimas, quer dizer a violência recai sobre as criaturas que o sacrifício devia preservar. Esta decadência, impotência ou ineficácia dos sacrifícios é o que Girard chama crise sacrificial. Esta favorece “a mimesis violenta.” A mimesis violenta pode ser compreendida como sendo actos de violência que são despoletados por imitação violenta ou por vingança. Assim, a crise sacrificial é a perda do poder benéfico da violência (sacrificial). Com efeito, no sacrifício há uma dupla dimensão da violência: a má violência e a boa violência. O sacrifício é o acto pelo qual a “boa violência” domina e apazigua a “má violência”. Assim, a crise sacrificial pode ser definida como “a perda da diferença entre a violência impura e a violência purificadora.” Quando numa comunidade, a perda de diferença chega, ela desencadeia a indiferença onde o puro confunde-se com o impuro, o legítimo com o ilegítimo, etc. A crise sacrificial deve ser concebida como uma crise de diferenças. As diferenças não são somente de ordem religiosa em particular, mas também de ordem cultural na sua totalidade; pois, a ordem cultural é um conjunto estruturado e sistematizado de diferenças. As diferenças conduzem às distinções e tornam possíveis as identidades dos indivíduos que se posicionam uns em relação aos outros. Quando o religioso se dissolve na indiferenciação, a ordem cultural desmorona-se com ele, e as instituições no seu fundamento e harmonia social sofrem as suas consequências. A crise sacrificial rompe e destrói as diferenças. Esta destruição não é sem consequência. Com efeito, a indiferenciação da crise sacrificial é sempre acompanhada da violência com o seu carácter mimético. O ser humano na comunidade primitiva sabe que a harmonia, a ordem e a fecundidade sociais são asseguradas pelas diferenças culturais. A indiferenciação torna possível o reino da força (violenta) que afirma o domínio do forte sobre o fraco e sobre a justiça.
Os homens nas sociedades modernas aspiram à uma igualdade que vê nas diferenças sérios obstáculos à constituição das identidades dos indivíduos e à harmonia dos seres humanos. Tendo em conta a perda do horizonte de sentido do sacrifício e da diferença, que caracteriza a sociedade moderna, os homens modernos dão-se conta da erecção duma sociedade violenta e de medo somente depois dos factos. Nestas sociedades cada um tenta tomar o protagonismo naquilo que se chama guerra preventiva tanto ao nível de relações individuais como internacionais.
Com efeito, nas sociedades modernas, trata-se da não concepção da indiferença como violência e vice-versa. A sociedade moderna parece ter perdido o sentido da justiça como definição das diferenças: diferença entre o legítimo e o ilegítimo, o legal e o ilegal, o permitido e o não-permitido, etc. Afinal, como diz Girard, “A justiça humana enraíza-se na ordem diferencial e sucumbe com ela.”
Assim, uma comunidade primitiva, privada da violência purificadora sacrificial está no mesmo estado de indiferenciação que uma sociedade moderna privada da transcendência judiciária. As duas sociedades fazem a experiência da crise sacrificial, quer dizer da crise de diferenças. As comunidades primitivas compreenderam-no sempre, porém, as sociedades modernas parecem não aceitá-lo, uma vez que elas ignoram o perigo da violência mimética.

CONCLUSÃO

O homem na sua existência está sempre e já confrontado à violência, pois ela encontra-se sempre à seu lado, no mundo da comunidade, seja qual for a forma desta comunidade e o seu grau de organização. A violência, na sua forma nua, é intolerável, pois os homens sabem que se eles a deixam instalar-se, é o caos e a morte que eles acolhem no seio deles. Portanto, é-lhes necessário organizá-la sem contudo poder desfazê-la. O sacrifício e o sistema judiciário moderno vêm cumprir esta tarefa.
O religioso faz violência à violência. Assim, a primeira violência é convertida em boa violência, violência purificadora. Quando o religioso e o cultural entram em crise, é o edifício social que se desmorona: não há mais violência boa (sacrifício). Então a má violência ganha espaço e protagonismo, não há mais diferenças; é a perturbação da ordem social, da ordem internacional; é a lei do mais forte sobre o mais fraco e o homem torna-se lobo para o outro, como dizia Hobbes. Será este o drama da sociedade moderna?
Distanciando-nos um pouco mais da perspectiva de pensamento de Girard, afirmaríamos que é-nos difícil descobrir, na abordagem de Girard, os limites entre a antropologia puramente cultural e a antropologia filosófica, embora a fenomenologia se imponha nas suas investigações. Mas, enquanto os nossos conhecimentos sobre este autor ainda não nos permitem dar resposta à esta questão, podemos lançar a nossa hipótese interpretativa que colocaria o autor numa perspectiva de filosofia da (s) cultura (s).
Outrossim, seria pertinente reconhecermos a dificuldade de delimitar taxativamente a comunidade primitiva e a sociedade moderna nos nossos países. Ou seja, para os nossos países, estes dois conceitos de comunidade primitiva e sociedade moderna devem ser interpretados numa perspectiva sincrónica ou diacrónica? Afinal, diante de situações em que afirmamos a necessidade, importância e pertinência do “judiciário” e perante as “manifestações rituais” que sempre se impõem no imaginário cultural de quem ainda acredita “ser da terra”, o questionamento é inevitável: estamos apenas diante dum eterno retorno do primitivo em nós? Ou devemos assumir a nossa existência numa tensão constante entre o tradicional e o moderno? Ou seja, não somos nós chamados a aceitar que somos habitantes dos dois sistemas – o primitivo e o moderno – de tal sorte que em nós eles complementam-se? A resposta a esta questão não interessa tanto quanto o questionamento do qual ela provém.

José Abel Moma


A GLOBALIZAÇÃO E O DEBATE ENTRE O ESTADO E O MERCADO


INTRODUÇÃO

Neste artigo queremos compreender a globalização à partir da leitura do terceiro capítulo, “Liberdade de escolher?”, do livro de Joseph Stiglitz, “Globalisation and its discontents”. Este capítulo, sustentado por outras leituras que fizemos sobre a globalização e os seus contornos, ajudar-nos-á a compreender o enfraquecimento ou o empobrecimento do papel do Estado no contexto da “nova” globalização. Aqui o adjectivo “nova” vem sublinhar o carácter essencialmente económico que a globalização tomou e que tornou possível o enfraquecimento do lugar económico e geopolítico das fronteiras dos Estados.
Tentaremos mostrar que esta globalização não existe por acaso, porquanto ela está, de certa maneira, ligada as medidas neo-liberais impostas aos países em desenvolvimento, sobretudo depois da queda do comunismo e do seu projecto ideológico e económico de sociedade.
Na óptica de Stiglitz, prémio Nobel de economia, estas medidas foram estruturadas naquilo que se chamou “Consenso de Washington” e encontram nas instituições económicas internacionais, sobretudo no FMI, um veículo ideal e real.
Assim, manifestaremos como no terceiro capítulo da obra de Stiglitz podemos revelar a existência dum vínculo estreito entre a Nova globalização, o Consenso de Washington e as Instituições de Breton Woods. Estes três factores apresentar-se-ão como elementos de inteligibilidade do empobrecimento do papel do Estado num universo globalizado.
Para fazer o nosso exame, começaremos por um ensaio de compreensão dos conceitos maiores do nosso artigo. Em seguida, estudaremos o debate Estado e Mercado, mostrando o que chamaremos a fé neoliberal no mercado; Enfim tentaremos propor, na esteira das novas tendências dos teóricos da economia, a possibilidade de repensar duma outra maneira o debate Estado e Mercado.

I. ENSAIO DE COMPREENSÃO DOS CONCEITOS.

A) A globalização
Se a globalização é um conceito plural e difícil de definir, pois a sua manifestação é sempre actual e inovadora (é um processo não acabado), ela é uma realidade que continua a interpelar o homem na sua capacidade de dar um sentido ao real. Deste modo, sendo a globalização pluridimencional, ela pode ser lida dum ponto de vista político, social, cultural, económico, religioso, etc.
Porém, como fenómeno, a globalização apresenta-se cada vez mais como uma realidade cujo motor é económico, e que se repercute em todas as dimensões da vivência do ser humano sempre e já no mundo em relação com outrem.
Como o compreenderem Yves Crozet, Lahsen Abdelmalki, Daniel Dufourt e René Sandretto, a globalização é o processo de integração conduzindo ao enfraquecimento do papel geopolítico das fronteiras dos Estados nacionais. A globalização acompanha-se de certa maneira duma desnacionalização dos espaços económicos dando lugar à um espaço mundial integrado. Esta desnacionalização suscita projectos mais ou menos acabados de regulação, à escala mundial, das actividades.
É à partir deste ângulo económico que Stiglitz compreende a globalização. Para este autor, fundamentalmente, a globalização é a integração mais estreita dos países e dos povos do mundo que foi realizada dum lado pela redução considerável dos custos do transporte e das comunicações, e doutro lado pela destruição das barreiras artificiais à circulação transfronteiriça de bens, de serviços, de capitais, de conhecimentos e (numa mínima medida) de pessoas.
A globalização, assim compreendida, gera novas instituições transfronteiriças de integração, de cooperação económica, social e política, firmas transnacionais e mesmo uma sociedade civil internacional.
A globalização trouxe alguns benefícios à humanidade tais como: a redução do sentimento de isolamento, a possibilidade de formar conjuntos sociais, políticos e éticos de pressão internacional, a ajuda internacional organizada aos países em aflição, uma solidariedade planetária, a compressão do espaço e do tempo graças ao acesso às novas tecnologias de informação e de comunicação. Mas, esta mesma globalização tem algumas insuficiências e traz consigo também alguns danos.
Entre os danos da globalização, podemos contar a destruição do meio ambiente, a ameaça de fagocitose cultural, o enfraquecimento e o apagamento do poder do Estado, a redução mercantil de quase todas as dimensões da vida humana, o imperialismo das grandes potências económicas mundiais, a imergência dum certo “pensamento único”, segundo as palavras de Ignacio Ramonet, etc.
Para Stiglitz os agentes que conferem à globalização a sua nova face são o que ele chama as “instituições globalizadoras” que, na sua óptica, são fundamentalmente o FMI, o Banco mundial e a OMC.

B) O “Consenso de Washington”

A noção de “Consenso de Washington” reenvia ao conjunto de decisões e de recomendações politico-económicas tomadas pelo FMI, o Banco mundial e importantes funcionários do governo americano para vir em auxílio dos países com economias deficitárias «A noção de “Consenso de Washington” foi criada em 1999 pelo economistas John Wiliamson. Sob este nome, ele resumiu tudo o que ele considerava como consenso actual entre o congresso dos Estados-Unidos, o FMI, o Banco mundial e “importantes fábricas de pensamento”.»
Sitglitz define o consenso de Washington como sendo “O consenso entre o FMI, o Banco mundial e o Tesouro americano sobre a boa política à seguir para os países em desenvolvimento.” No dizer de Stiglitz, este consenso transformou a orientação das instituições globalizadores. Com efeito, estas instituições que até aí seguiam a orientação do economista britânico John Maynard Keynes que sublinhava as insuficiências do mercado e defendia a tomada a sério do papel do Estado na criação de empregos, tornaram-se instituições encarregues de impor a ideologia do mercado, pregada por Ronald Reagan e Margaret Tchatcher aos países pobres.
Historicamente, o consenso de Washington era uma resposta aos problemas reais aos quais faziam face a América latina nos anos oitenta. Os enormes défices orçamentais criaram uma profunda crise económica, marcada por uma hiper-inflação com todas as consequências devastadoras ao nível político e social. No entanto, as medidas concebidas para os problemas da América latina tornaram-se recomendações a aplicar em todos os países em desenvolvimento.
Stiglitz fala de três pilares constituindo o Consenso de Washington: “a austeridade, a privatização e a liberalização foram os três pilares do consenso de Washington nos anos oitenta e noventa.”

II. O DEBATE ESTADO E MERCADO NA GLOBALIZAÇÃO ACTUAL

A partir da apresentação que fizemos do fenómeno da globalização e da noção de Consenso de Washington, identificamos um vínculo estreito entre a globalização tal qual se apresenta hoje (sobretudo para os países em desenvolvimento) e as instituições económicas internacionais, que Stiglitz chama as instituições globalizadoras. Estas instituições, sobretudo o FMI, estão encarregues de garantir uma estabilidade macroeconómica do mundo, muitas vezes celebrando a ideologia do livre mercado em detrimento do papel do Estado na organização da economia dum país. “As receitas do FMI, em parte fundadas sobre a hipótese ultrapassada segundo a qual o mercado chega espontaneamente aos resultados mais eficazes, não autorizam as intervenções desejáveis do Estado sobre o mercado: as medidas que podem guiar o crescimento económico e melhorar as condições de todos. Portanto, o que está em causa, a maior parte dos afrontamentos que vou relatar, são as ideias e as concepções do papel do estado que dela resultam”.
Assim, o FMI, impondo estas medidas exageradamente liberais, reduz o papel do Estado na organização da economia. Esta acção do FMI pode ser, para nós, um elemento de compreensão do fenómeno do enfraquecimento e mesmo do empobrecimento do papel do Estado na “nova” globalização.
Propomo-nos estudar este debate, concernente o papel do Estado e do mercado, à partir de três elementos de reflexão que tomamos em Stiglitz. Estes elementos mostram-nos o processo da redução do papel do Estado na economia dum país, o que gera consequências sociais difíceis de gerir num “universo globalizado”. Estes três elementos são: a privatização, a liberalização e o papel do investimento estrangeiro.

A) A Privatização

Duma maneira geral, a privatização é “a conversão de actividades e de empresas geridas pelo Estado em ramos e em firmas privadas.” Para Stiglitz, esta medida politico-económica é algumas vezes necessária, pois, em geral, o sector privado em estado de concorrência pode melhor cumprir certas tarefas assumidas pelos Estados. Com efeito, estes algumas vezes gastam-se muito fazendo o que não deviam fazer e consequentemente esquecem o que devem fazer.
Porém, a privatização como ela é recomendada e exigida pelo FMI, muitas vezes não respeita as etapas necessárias da aplicação destes processos em países subdesenvolvidos. Assim, não há nem estimulação de concorrência nem um conjunto de regulamentações tomadas pelo Estado contra os possíveis abusos do poder de monopólio.
A aplicação precipitada da privatização estava motivada pela presunção segundo a qual os mercados agem imediatamente para dar respostas adequadas a todas as necessidades. Mas, a privatização dirigida com estes pressupostos levou ao desemprego, com custos sociais que as empresas privadas não poderam suportar. Assim, o Estado, que é posto de lado no processo de privatização, é obrigatoriamente chamado à assumir e gerir as consequências sociais negativas da privatização: a violência urbana, o aumento da criminalidade, os problemas sociais e políticos, a angustia geral, o descontentamento massivo, a baixa escolarização, etc.
A privatização pode ser compreendida como o processo que põe e expõe o público ao domínio e nas mãos das firmas ou empresas privadas – muitas vezes multinacionais e transnacionais. Ela toca principalmente os sectores produtivos do Estado como a energia, as minas, as telecomunicações, os transportes, etc. Assim, a privatização apresenta-se como uma vitória do Mercado sobre o Estado.

B) A Liberalização

Por liberalização compreende-se “a supressão da intervenção do Estado sobre os mercados financeiros e os desmantelamentos dos entraves ao comércio”. A liberalização implica o desmantelamento ou a baixa dos direitos aduaneiros dos países menos desenvolvidos e a supressão das medidas proteccionistas da parte dos Estados. A liberalização atinge dois aspectos da economia dum país: as finanças e o comércio.
Aplicada ao campo comercial, a liberalização, abrindo as fronteiras, visa o crescimento das receitas dum país pelo processo de transferência dos seus recursos de uso pouco produtivos à outros que o são muito mais. Quanto ao aspecto financeiro, a liberalização é considerada com podendo promover a eficácia dos mercados de capitais, tornando-os livres e abertos.
Com esta medida neoliberal, elimina-se todas as barreiras proteccionistas postas pelo Estado. Eis um outro elemento de inteligibilidade do debate Estado e Mercado num contexto de globalização essencialmente marcado e dominado por um espírito neoliberal.

C) O Investimento Estrangeiro

Os dois primeiros elementos estudados, a privatização e a liberalização, tornam a economia dos países livres para o investimento privado, pelo processo de minimização do papel do Estado na gestão e regulamentação da economia dum país. Esta abertura do mercado num país subdesenvolvido, onde muitas vezes faltam tanto o capital como o espírito de empresa, é mais favorável às empresas e firmas multinacionais estrangeiras que investem nestes países com o seu dinheiro, o seu “know how” e a sua técnica. Assim, o investimento estrangeiro é “um elemento chave da nova globalização.” Stiglitz explica o papel do investimento estrangeiro num universo globalizado, nos seguintes termos: A privatização, a liberalização e a macroestabilidade são consideradas como sendo capazes de instaurar um clima que atrai os investimentos, dos quais os estrangeiros. Estes investimentos geram o crescimento. As empresas estrangeiras trazem uma peritagem técnica e abrem os mercados exteriores.
O investimento estrangeiro apresenta-se como sendo a intenção ou pelo menos a consequência lógica da privatização e da liberalização. Ele é também uma destas palavras mágicas que caracterizam os discursos politico-económicos, na globalização, defendendo o desenvolvimento dos países do sul, sobretudo os africanos. Com efeito, no programa de acção da NEPAD, no ponto C.1. IV., concernente a mobilização dos recursos, revela a importância do investimento estrangeiro, abordando-o em termos de fluxos de capital privado: “A Nova parceria para o desenvolvimento de África procura aumentar o fluxo do capital privado para África, como uma componente essencial dum acesso à longo termo sustentável para colmatar as lacunas de recursos”.
Assim, a entrada em cena do investimento estrangeiro reforça o poder dos actores económicos livres, privados e internacionais em detrimento do Estado.

III. A FÉ NO MERCADO

Para Stiglitz, as instituições globalizadoras, o FMI à cabeça, contribuíram duma certa maneira ao enfraquecimento do papel do Estado na organização da economia. Segundo este prémio Nobel de Economia, “se o FMI tinha uma visão exageradamente optimista dos mercados, ele tinha uma visão exageradamente pessimista do Estado.” Com esta visão, eles subestimaram o papel do Estado na orientação, regulamentação, controle, mas sobretudo nas suas intervenções necessárias e desejáveis para vir em auxílio do Mercado, quando este funciona mal.
A política da liberdade do mercado situa a sua paternidade na afirmação de Adam Smith da “mão invisível”. Segundo esta afirmação, as forças e as estruturas do mercado, centradas na motivação do proveito, orientam a economia à eficácia à maneira duma mão invisível. Ora, as novas teorias económicas precisaram as condições de justificação da acepção de Adam Smith:
Cada vez que a informação é imperfeita e os mercados incompletos, quer dizer sempre e particularmente nos países subdesenvolvidos, a mão invisível funciona muito imperfeitamente. Conclusão essencial: “Existem intervenções do Estado desejáveis, que em princípio, podem melhorar a eficácia do mercado. (…) Muitas actividades essenciais do Estado são a interpretar como respostas aos fracassos do mercado (…)”
As conclusões às quais chegam as novas teorias económicas mostram-nos o quanto a relação Estado e Mercado deve ser pensada em termos de complementaridade e não de rivalidade. Essas conclusões ajudam-nos também a compreender o mal-estar que os Estados sentem num “universo globalizado” onde os actores maiores acreditam excessivamente na eficácia do livre mercado, ignorando o papel do Estado.

IV. REPENSAR DOUTRA MANEIRA O DEBATE ESTADO E MERCADO

Num tempo e espaço globalizado onde a política neoliberal reina, é preciso repensar duma outra maneira a relação estado e mercado fora dos termos de retirada do Estado. Com efeito, o mercado tem os seus limites que exigem uma intervenção do Estado. Pensamos que é preciso tomar a sério o paradigma Stiglitziano da “complementaridade e da parceria”. Stiglitz é claro na sua confissão: “Esforcei-me (…) em elaborar uma política e uma filosofia económica que encarava o Estado e os mercados numa relação de complementaridade, de parceria e que admitia que, se os mercados são o centro da economia, o Estado também tem um papel a desempenhar, limitado mas importante. Eu tinha estudado as insuficiências dos mercados e dos Estados, e não era ingénuo em acreditar que o Estado podia paliar todas as lacunas dos mercados. Também não era louco até ao ponto de imaginar que os mercados iam resolver por eles mesmos o conjunto de problemas sociais. Em relação a desigualdade, o desemprego, a poluição o Estado tinha um lugar importante a segurar. Eu tinha trabalhado na iniciativa “Reinventar o estado” – torna-lo mais eficaz e mais aberto ao diálogo.”

Se o comunismo, com o seu paradigma da economia centralizada, e o Estado-providência das democracias cristãs manifestaram-se as vezes ineficazes, a concepção neoliberal do livre mercado pode também nos levar a impasses tanto à nível da promoção do desenvolvimento como da redução da pobreza no mundo e a promoção da justiça social.
O Mercado não pode ignorar o Estado. Nós compreendemos o Estado como a instância razoável que, na acção, concilia o universal racional do mercado com o universal moral, cultural e histórico dum povo.
“O Estado pode desempenhar um papel essencial – e o faz – não somente para temperar os fracassos do mercado, mas também para assegurar a justiça social: para eles mesmos, os mecanismos dos mercados podem as vezes deixar muita gente sem recursos suficiente para sobreviver”
O Estado tem uma palavra a dizer e um papel essencial a desempenhar no desenvolvimento das sociedades humanas. “O Estado tem um papel maior a desempenhar na promoção do crescimento económico e do desenvolvimento, e na execução dos programas de redução da pobreza”.
Pertence ao Estado evitar que a existência humana seja reduzida à lei do mercado; Com efeito, devemos evitar o total “mercantilização” da existência humana no mundo.
Não se pode (…) fazer confiança [no mercado] para produzir os bens públicos por natureza como a defesa. Em certos domínios, não há mercado: Os Estados asseguraram os créditos aos estudantes, por exemplo, porque o mercado não chegava espontaneamente a financiar o investimento em capital humano. E, para toda uma série de razões, os mercados, muitas vezes não se auto-regulam – há expansões e crises – tanto é assim que o Estado desempenha um papel estabilizador importante.
A globalização (neoliberal) não deve ignorar questões de legalidade e de legitimidade quando se trata de políticas do desenvolvimento, de redução da pobreza, etc. Estas políticas neoliberais deveriam ser acompanhadas de medidas que promovam a democracia enquanto ela permite um acesso real à informação e ao debate da parte daqueles que serão afectados pelas políticos tomadas. É deste debate e da aceitação dos seus resultados que depende a legitimidade das acções empreendidas, mesmo as económicas, visto que também elas implicam pessoas humanas, sujeitos de direito. Neste sentido, mesmo a NEPAD, este ambicioso projecto de desenvolvimento de África, precisa também dum debate público à nível das populações africanas e não deve ficar ao nível de projecto das elites africanas.
A planificação razoável é um elemento importante na economia. Neste caso, o Estado pode ser a instância ideal para a promoção dum debate do qual podemos extrair algumas linhas de planificação desejáveis segundo o contexto próprio aos países.
Neste sentido, pensamos com Stiglitz, que o papel das instituições internacionais seria o de ajudar os Estados a escolher as melhores políticas de desenvolvimento que lhes convêm segundo os seus contextos, sem exigir uma fidelidade à ortodoxia económica e financeira neoliberal.
Os países devem encarar as diversas opções, e, no quadro do processo político democrático, escolher elas mesmas. A tarefa das instituições económicas internacionais deve ser (deveria ser) de lhes dar os meios para fazer uma escolha informada, compreendendo bem as consequências e os riscos de cada opção. A liberdade é primeiramente o direito de escolher e assumir as suas escolhas.

CONCLUSÃO

Neste artigo, quisemos compreender a globalização no seu impacto sobre o papel do Estado. Para além dos efeitos positivos e negativos da globalização, com a sua política neo-liberal, quisemos reflectir sobre o papel do Estado na globalização.
A noção de Consenso de Washington ajudou-nos a compreender a origem e o processo de execução das políticas de liberalização, de privatização, da promoção do investimento estrangeiro, etc. que contribuíram para o empobrecimento do Estado.
A consciência dos limites e das imperfeições de todas as coisas humanas ajuda-nos a assumir filosoficamente os resultados recentes das teorias económicas que sublinham as insuficiências do mercado. Assim, reflectimos sobre a possibilidade de pensar diferentemente o debate Estado e Mercado. Se hoje o Estado já não poderia mais ser defendido numa perspectiva comunista pura e dura, ele pode ser defendido numa perspectiva de desenvolvimento humano sustentável e legítimo, quer dizer não-redutivo. A existência humana é pluridimencional e ela é vivida numa tensão, às vezes contraditória. Talvez é preciso conservar, harmonizando e não eliminando, esta tensão entre o Estado e o Mercado, não somente nos países subdesenvolvidos, mas também nos países desenvolvidos.


José Abel Moma
mjoseabel@yahoo.fr

A CRÍTICA DE ARISTÓTELES AO COMUNISMO DE PLATÃO

INTRODUÇÃO

Neste artigo propomo-nos analisar a crítica aristotélica ao “comunismo” de Platão. Para tal, primeiramente tentaremos compreender o sentido e o alcance da proposição platónica duma comunidade de funções, de mulheres, de crianças e de bens. Estudaremos o livro V da “República” onde, na sua constituição ideal, Platão propõe o princípio da comunidade de funções, de mulheres, de crianças e de bens. Desenvolvendo a visão e os argumentos platónicos em favor deste princípio que chamaremos comunista, sublinharemos a preocupação política de Platão em dar à Polis a mais forte forma de unidade de interesses, como o maior bem para a Polis – Cidade/Estado.
Depois de ter compreendido a intenção e a extensão do “comunismo” de Platão, encetaremos o estudo da crítica aristotélica deste comunismo. Neste sentido, analisaremos o livro II da “Política”, onde Aristóteles estuda as constituições então existentes, inclusive a constituição platónica da “República”, para mostrar o que elas têm de correcto e de útil e o que elas encerram de defeito. O nosso estudo da crítica aristotélica do comunismo de Platão compreenderá três pontos: Em primeiro lugar, analisaremos a crítica de Aristóteles à comunidade platónica de funções entre os dois géneros; em segundo lugar tentaremos compreender a crítica aristotélica da comunidade de mulheres e de filhos, tendo o cuidado de mostrar a estrutura de cada argumento desta crítica; Finalmente, abordaremos a crítica aristotélica do comunismo platónico de bens. Neste último ponto, faremos alusão à censura que Aristóteles endereça à Platão pelo facto deste não ter determinado o estatuto político dos outros membros da Polis (sobretudo os lavradores) em relação ao seu comunismo.
Em guisa de conclusão, tentaremos mostrar a pertinência das duas perspectivas – a visão “comunista” de Platão e a crítica “liberal” de Aristóteles – vendo como estas duas perspectivas podem complementar-se em relação à intenção que elas têm: a de garantir o maior bem da Polis. É neste sentido que exploraremos o nosso ponto de vista quanto ao tema tratado no presente artigo.

I. O COMUNISMO DE PLATÃO
No livro V da “República”, Platão propõe a sua constituição ideal de acordo com a visão da justiça que ele desenvolve nos livros precedentes. Instantemente interrogado pelos seus interlocutores (entre os quais Adimante e Glaucon) sobre o género de comunidade a advogar entre os encarregados da Polis quanto às crianças, às mulheres, e quanto à primeira educação propriamente dita, Sócrates – aquele que podemos considerar o porta-voz de Platão – começa fazendo saber o porquê da sua hesitação ao responder à questão evoca a complexidade do problema. Segundo Sócrates, esta complexidade faz com que as pessoas não acreditem na possibilidade da realização desta comunidade nem na sua excelência. A justificação dada por Sócrates é seguida – sempre sob a forma de diálogo – da afirmação platónica da comunidade de funções entre os dois géneros, e da comunidade de mulheres e de crianças dos encarregados da Polis. Exploraremos num primeiro tempo estas duas afirmações que formam os pontos principais da constituição de Platão.

I.1. A COMUNIDADE DE FUNÇÕES DOS DOIS GÉNEROS
A constituição ideal de Platão, visando uma cidade justa, defende a comunidade de funções dos homens e das mulheres. Esta comunidade seria garantida por uma mesma educação dada aos dois géneros à partir do princípio segundo o qual entre os homens e as mulheres não há diferença de natureza quanto as aptidões técnicas.
Na República, Platão apresenta a sua visão comunista do governo da cidade, da seguinte maneira: “Em seguida, meu amigo, não há nenhum emprego concernente a administração da cidade que pertença à mulher enquanto mulher ou ao homem enquanto homem; ao contrário, as aptidões naturais são igualmente repartidas entre os dois géneros, e é conforme a natureza que tanto a mulher quanto o homem participe à todos os empregos, embora em todos ela seja mais fraca que o homem.”
Desta citação tiramos não só a afirmação platónica da comunidade de funções, mas também a sua justificação argumentativa. O argumento que citamos faz seguimento à comparação que Platão estabelece entre as cadelas e os cães que devem preferivelmente cooperar na caça e fazer o resto em comum, em vez das cadelas ficarem no canil sob pretexto de terem de parir e alimentar os cachorros. Desta comparação Platão conclui que a mulher e o homem têm a mesma natureza quanto a aptidão de tomar conta da cidade, pese embora o facto da mulher ser mais fraca que o homem. Mas, o aspecto de fraqueza, Platão o encontra também entre os homens do mesmo sexo, visto que há homens mais fracos que os outros e mesmo mais fracos que algumas mulheres. Assim, para Platão, dever-se-ia escolher mulheres semelhantes aos guerreiros da cidade para que elas possam viver com eles e com eles guardar a cidade. Eis declarada a comunidade de funções na cidade “justa” de Platão.
Para que a sua comunidade seja efectivamente realizável, Platão propõe o que podemos chamar a uniformidade da educação: “Portanto, se nós exigimos às mulheres os mesmos serviços que aos homens, devemos formá-las nas mesmas disciplinas.” Esta formação, essencialmente constituída pela música e pela ginástica, desenvolverá tanto nos homens quanto nas mulheres aptidões naturais para se tornarem encarregados da cidade. As mulheres assim escolhidas, tendo em conta as suas aptidões de serem encarregadas da cidade, serão também dadas para companheiras e colaboradoras dos encarregados da cidade (os guardiães).
Deste modo, com Platão o factor sexo deixa de ser um factor determinante na repartição das funções administrativas. O único factor determinante é a aptidão de cada ser humano. Neste sentido, Platão faz cair o monopólio do homem quanto ao governo-protecção da cidade. Dito isto, podemos passar à afirmação, em Platão, da comunidade de mulheres, de crianças e de bens.

I.2. A COMUNIDADE DE MULHERES, DE FILHOS E DE BENS.

A comunidade de mulheres e de filhos pode também ser chamada comunidade de família. Esta é a consequência da comunidade de funções dos dois géneros na medida em que este tipo de comunidade tem implicações na organização da família. Assim, Platão decreta que as mulheres e os filhos devem ser comuns à todos os guardiães: “As mulheres dos nossos guardiães serão comuns todas à todos: nenhuma delas habitará em particular com um deles; mesmo os filhos serão comuns, e os pais não conhecerão os seus filhos nem estes os seus pais.” Com este decreto, Platão elimina da sua “República” a forma normal da família restrita. Este decreto é a manifestação duma necessidade consequencial que decorre do facto que tendo as mesmas funções, as mesmas casas, partilhando as mesmas refeições e tendo a mesma educação, os homens e as mulheres serão naturalmente levados a formar uniões. Eis como Platão escreve: “Ora aqueles e aquelas que terás escolhido, tendo casa comum, tomando em comum suas refeições e não possuindo nada em próprio, estarão sempre juntos; e encontrando-se misturados nos exercícios do ginásio e em todo o resto da educação, eles serão trazidos por uma necessidade natural, penso eu, a formar uniões.”
Para realizar esta comunidade de mulheres e de filhos, deve-se facilitar e tornar frequentes as relações entre os homens e as mulheres guardiães que formam a elite da cidade. Daí a necessidade da instituição das festas que servirão também à reunião dos noivos.
Desta comunidade decorre uma espécie de “anonimato” que torna quase impossível a distinção das crianças. Assim, todos os filhos que nasceram no período em que os seus pais davam filhos à cidade tratar-se-ão de irmãos e irmãs, mas não conhecerão os seus verdadeiros pais.
Esta visão comunitária platónica da vida na cidade é sustentada por uma certa concepção “elitista” que se descobre na “República”. Com efeito, Platão preocupa-se em conservar a pureza da elite (guardiã) encorajando os casamentos comuns entre esta classe e excluindo desta esfera aqueles que, por natureza e por educação, não têm as mesmas aptidões. Isto é de tal maneira claro em Platão que podemos classificá-lo de “eugenista”.
Esta comunidade de funções, de mulheres e de filhos implica uma comunidade de bens, que, segundo Platão, torna a cidade mais unida e impede nela a divisão: “Então não tenho razão de afirmar que as nossas disposições anteriores, com aquelas que nós acabamos de tomar, farão deles, ainda mais, verdadeiros guardiães, e impedir-lhes-á de dividir a cidade, o que aconteceria se cada um não chamasse seu as mesmas coisas, mas coisas diferentes; se, habitando separadamente, eles tirassem das suas casas respectivas tudo do qual eles podiam assegurar-se a possessão para eles só; e se, tendo mulheres e filhos diferentes, eles criassem gozos e penas pessoais – enquanto com uma crença idêntica no tocante ao que lhes pertence, eles teriam os mesmos objectivos e sentiriam, na medida do possível, as mesmas alegrias e as suas dores?”
O parágrafo que acabamos de citar manifesta uma passagem – quanto ao argumento de Platão – à um outro nível. Do simples argumento sobre a possibilidade e a realização da comunidade de funções, das mulheres, das crianças e dos bens, Platão passa ao argumento sobre a desejabilidade, ou seja as vantagens, duma tal comunidade para a constituição da cidade justa.
Ao lado da mais forte união que a comunidade de bens oferece, assinale-se também o respeito das pessoas mais velhas, sendo que elas serão considerados pais anónimos ou não-distintos: “Assim, também os jovens não tentarão, sem uma ordem dos magistrados, usar de violência para com os mais velhos nem bater-lhes; eles não os ultrajarão, penso eu, de maneira nenhuma, pois dois guardiães bastarão para os impedir: o temor e o respeito; o respeito mostrando-lhes um pai na pessoa que eles quererão bater, o temor fazendo-lhes apreender que os outros virão em auxílio da vítima, alguns na qualidade de filhos, outros na qualidade de irmãos ou de pais.”

Esta visão comunista de Platão será posta em questão por Aristóteles para quem o maior bem da cidade é amizade cívica que supõe a pluralidade e a propriedade.


II. A CRÍTICA ARISTOTÉLICA DO COMUNISMO DE PLATÃO

No livro II da “Política”, Aristóteles propõe-se estudar a forma de comunidade mais perfeita, começando por uma análise das constituições já existentes, com vista a identificar o que elas têm de correcto e de útil, mas também o que elas têm de defeito. Assim, examinando a constituição ideal de Platão – a que ele nos propõe na República –, Aristóteles critica em primeiro lugar a visão comunista que Platão exprimiu na sua constituição. Com efeito, embora reconheça a impossibilidade de nada haver em comum na cidade, pois ao menos a constituição ela mesma e o território devem ser uma espécie de propriedade comum para que possamos falar de Polis, Aristóteles empreende uma análise da constituição platónica da “República” que proclama a possessão comum das funções, mulheres, filhos e bens.
II. 1. A CRÍTICA ARISTOTÉLICA DA COMUNIDADE DE FUNÇÕES
Quanto à comunidade de funções dos dois géneros, vimos que Platão a estabelece à partir duma reflexão sobre a natureza do homem e da mulher. Esta reflexão baseia-se numa comparação dos homens aos animais. Para Aristóteles esta comparação platónica não é sã e arrasta consigo um equívoco, pois o que nos animais não é contra a natureza pode sê-lo no género humano. Isto quer dizer que não há uma identidade perfeita entre a natureza do animal e a do homem sobretudo porque Aristóteles compreende o homem como animal racional: “É igualmente absurdo empregar a comparação tirada dos animais selvagens para mostrar que as mulheres devem ter as mesmas ocupações que os homens”
Para além disso, para Aristóteles, as virtudes dos homens são claramente diferentes das virtudes das mulheres, quer dizer que cada género tem as suas próprias virtudes que não devem ser confundidas. Esta concepção aristotélica é contra a comunidade de funções entre os dois géneros proposta por Platão.
Portanto, quanto à comunidade de funções entre os géneros, há em Platão e Aristóteles duas concepções antropológicas diferentes. É a partir da concepção antropológica do homem e da mulher, que extraímos do livro I e II da “Política”, que quisemos compreender a pertinência e o alcance da crítica aristotélica ao tipo de comunidade platónica.

III. 2. A CRÍTICA ARISTOTÉLICA DA COMUNIDADE DE MULHERES E DE FILHOS

Queremos aqui compreender a crítica de Aristóteles à comunidade platónica de mulheres e de filhos tentando analisar os diversos argumentos que Aristóteles nos propõe no seu livro II da “Política”.
- Primeiramente, encontramos na crítica de Aristóteles o argumento que nós preferimos chamar “lógico”. Com efeito, considerando a mais forte forma de unidade de interesses, que decorre da comunidade de mulheres, de filhos e de bens em geral, como “maior bem para a cidade” e seu ideal; a prova que Platão dá desta unidade não é sustentável logicamente nem sociologicamente. Com efeito, se “todos” os cidadãos da República devem ser capazes de dizer ao mesmo tempo: “esta mulher (esta criança) é minha e não é minha”, o termo “todos” encerra um equívoco. Se a palavra “todos” é tomada na sua distribuição individual, cada cidadão pode dizer da mesma mulher ou da mesma criança: “minha mulher”, “meu filho”, e é este o verdadeiro sentido da propriedade. Todavia, na realidade, o “todos” em Platão não é tomado no “sentido distributivo”, mas “colectivo” da totalidade dos indivíduos, de tal sorte que, na verdade, ninguém pode dizer duma mulher e duma criança que ela lhe pertence em próprio:
“Com efeito, a palavra todos apresenta uma ambiguidade. Se ela significa cada indivíduo tomado distributivamente, então o estado de coisas que Sócrates deseja criar teria talvez mais possibilidades de ser realizado (…). Mas, na realidade (…) a palavra todos designa-os todos colectivamente (…); é à todos colectivamente que estes bens pertencem, e não à cada um deles individualmente.”
Dito isto, vemos que a “tomada individual” do todos, na sua distribuição é irrealizável, enquanto a sua “tomada colectiva” – aquela efectivamente visada por Platão – não faz justiça ao objectivo de Platão que era o acordo dos cidadãos na afirmação ao mesmo tempo do meu e do não meu.
- Em segundo lugar, queremos extrair o argumento sobre a finalidade do Estado (argumento “teleológico”). Para Platão, a comunidade ou a “unidade mais forte possível” constitui o maior bem da cidade. É esta a afirmação de base que sustenta toda a proposição “comunista” de Platão. Ora, para Aristóteles, o comunismo unificador de Platão traz consigo a ruína do estado. Pois o estado é por natureza uma pluralidade. Aristóteles critica o princípio da unidade da cidade, como foi compreendido por Platão, porque ele destrói a pluralidade, que constitui a natureza mesma do Estado. Se o Estado é por natureza pluralidade, e o bem de uma coisa é o que permite a conservação da mesma, então a unidade não pode constituir o maior bem da Polis. «É evidente que o processo de unificação prosseguido com muito rigor, não haverá mais Estado, pois a cidade é por natureza a pluralidade e levando muito longe a sua unificação tornar-se-á família e de família, individuo.»
- Em terceiro lugar queremos reflectir sobre o argumento que nós chamamos “económico”. Para Aristóteles, a independência e a auto-suficiência económica prende-se muito com a pluralidade e a diversidade dos membros dum todo. Donde a família basta-se mais facilmente que um indivíduo, e o mesmo acontece com a cidade em relação à família.
Segue-se que a procura da unificação excessiva da Polis através do comunismo platónico é criticada por Aristóteles: «portanto, se devemos preferir o que possui uma maior independência económica; um grau mais fraco de unidade é também preferível à um grau mais elevado.» Vemos aqui que o que é importante para Aristóteles não é a unidade absoluta e excessiva da Polis, mas sim a sua independência económica, que se torna possível e assegurada pela pluralidade e a diversidade dos membros que constituem a cidade.
- Em quarto lugar, queremos reflectir sobre o argumento que designamos de “psicológico-afectivo”. A doutrina platónica da comunidade de mulheres e de filhos encerra um certo anonimato na relação “homem-mulher”, “pais-filhos” que implica um descompromisso prático nas relações afectivas de uns em relação aos outros, pois, como diz a sabedoria dos antigos “a coisa pública é coisa de ninguém”. Assim, ninguém se preocupará, por exemplo, dos filhos de todo o seu coração. Com efeito, na “República” de Platão, qualquer um (entenda-se da classe dos guardiães) torna-se pai, filho, mulher ou homem (esposo) de qualquer um. Nestas circunstâncias, «desde que pensemos que um outro se ocupa duma coisa, somos levados à negligenciá-lo muito mais.»
- Em quinto lugar, temos o argumento que chamamos “sociológico”. Efectivamente, o “comunismo” de Platão tem como consequência gerar uma certa confusão a propósito do parentesco recíproco. Vista a semelhança entre alguns cidadãos, as pessoas serão naturalmente levadas a procurar nas pessoas que se assemelham uma relação de parentesco. Neste sentido, Aristóteles diz que “não é possível evitar que certas pessoas suspeitem algumas outras de serem seus próprios irmãos ou seus próprios filhos ou seus próprios pais ou mães, pois as semelhanças que existem entre as crianças e os seus pais fornecem necessariamente índices justificando a crença num parentesco recíproco.”
- Em sexto lugar, queremos falar do argumento “jurídico”. Com a eliminação da família, consequência da comunidade de mulheres e de filhos, Platão acreditava que ele iria garantir o desaparecimento dos delitos de impureza que provêm da relação doméstica familiar. Para Aristóteles, as disposições comunistas de Platão trazem consigo consequências contrárias àquelas que ele tinha previsto. Pois, ao invés de respeitar todo mundo como pais, todo o mundo será estrangeiro, sendo que não haverá mais relações de parentesco: “é mesmo inevitável que estes delitos [violações de piedade] se produzam mais frequentemente quando as relações de parentesco são ignoradas que quando elas são conhecidas; e uma vez consumadas, a possibilidade de recorrer à expiações legais não joga que quando o parentesco é conhecido”
- Em sétimo lugar, temos o argumento que chamamos “antropológico”. Este argumento consiste em condenar uma espécie de incesto não consumado. Aristóteles pensa que não há sentido de privar os amantes de toda a relação carnal, enquanto se permite o amor e as familiaridades entre pai e filho e entre os irmãos. Segundo Aristóteles, é sobretudo esta última relação que é condenável e que deveria ser proibida pelo facto mesmo de se tratar de relações entre pai e filho ou entre irmãos: “é ainda absurdo que depois de ter estabelecido a comunidade de filhos, contentemo-nos de privar os amantes de todo comercio carnal, sem proibir o amor nem as outras familiaridades, que entre pai e filho ou entre irmão e irmão são tudo o que há de mais chocante, pois no caso deles o simples amor é já condenável.”
- Em oitavo lugar, falaremos do argumento que nós chamamos “legislativo”. Com efeito, se leis justas e correctas geram situações justas e correctas, as leis de Platão que se baseiam na sua comunidade de mulheres e de filhos trazem consigo um estado de coisas que mete em questão a justiça e o sentido mesmo destas leis. Assim, se para Platão, o maior dos bens é a unidade e essa decorre da amizade, como, segundo Aristóteles, Platão ele mesmo o reconhece; as leis comunistas de Platão pecam na sua vontade de realizar o que elas querem, pois a comunidade desfaz a amizade: «nós estimamos (…) que a amizade é o maior dos bens para as cidades (…), e Sócrates louva como estando acima de tudo a unidade do Estado, a unidade que parece ser, como ele mesmo o declara, uma criação da amizade, (…) na cidade platónica, sob o efeito da comunidade da qual queremos nos gratificar, é inevitável que a unidade se dilua e que o pai não possa mais dizer de maneira nenhuma: meu filho, ou o filho: meu pai.»
Depois de termos extraído estes argumentos, devemos agora dizer que todos os argumentos de Aristóteles decorrem da sua concepção antropológica e política do ser humano que lhe permite afirmar a primazia da “amizade” como o bem maior da sociedade em relação à “unidade”. Para Aristóteles, é de preferência a solicitude mútua e o amor que devem construir a unidade da sociedade, e não o comunismo que exactamente impede o surgimento e o desenvolvimento da solicitude e do amor: “Há no homem, dois móbeis predominantes de solicitude e de amor: o sentimento da propriedade e a afeição exclusiva; ora nenhum destes móbeis encontra lugar num Estado destes, constituído [pela comunidade de mulheres, de filhos e de bens].”

II. 3. A CRÍTICA ARISTOTÉLICA DO COMUNISMO PLATÓNICO DE BENS

Sobre o comunismo de bens, proposto por Platão na “República”, Aristóteles reafirma a sua concepção da cidade como pluralidade. É esta pluralidade que, através da educação, deve chegar à uma comunidade ou unidade que não seja absoluta, pois o excesso de unidade pode corromper o Estado. Esta reafirmação é sustentada, a nosso aviso, por três argumentos que vamos agora revelar.
- Ao primeiro argumento chamamo-lo “metodológico”. À este propósito, Aristóteles critica Platão pelo facto de não ter mostrado os limites da sua proposição da comunidade de bens. Com efeito, Platão faz referência somente às vantagens do seu comunismo constitucional, enquanto o rigor e a humildade dum trabalho filosófico exigem também que reflictamos sobre os limites do nosso trabalho: “Seria justo indicar não somente os males dos quais os homens serão livrados adoptando a comunidade de bens, mas também as vantagens das quais eles estarão privados; ora é manifesto que o tipo de vida que eles deveriam levar é absolutamente intolerável.”
- O segundo argumento é de ordem “ética”. Por este argumento, Aristóteles mostra que a comunidade de bens impede o exercício da “moderação” e da “liberalidade”. A moderação prende-se com as mulheres, na medida em que o homem seria capaz de evitar e não procurar a mulher do outro. Esta virtude é alargada aos bens de maneira geral. Quanto à liberalidade, ela refere-se ao emprego dos bens, na medida em que o homem seria generoso na sua capacidade de oferecer o que lhe pertence. “Juntemos à isto o facto que assim se reduz à nada (…) o exercício de duas virtudes, em primeiro a moderação no que concerne as mulheres (…) e seguidamente a liberalidade no emprego dos bens.”
- O terceiro argumento está ligado àquilo que podemos chamar o argumento “antropológico-jurídico”. Propondo a sua comunidade de bens, Platão explica os males que roem os outros Estados pelo facto deles não legislarem, como ele, uma propriedade comum de bens. Aristóteles critica esta posição de Platão, pois, para ele, os males dos quais Platão fala – por exemplo os problemas jurídicos de contratos, bajulações dos opulentos – não se prende com a falta de comunidade de bens, mas sobretudo com a perversidade humana ela mesma: “A legislação platónica é de aspecto sedutor, e pode parecer inspirada pelo amor do género humano. Com efeito, aquele que o escuta expor acolhe-o com satisfação (…), sobretudo quando ele escuta atribuir os males existentes actualmente nos Estados ao facto que aí os bens não são postos em comunidade (…). Na realidade estes males não têm nunca como causa o defeito de comunidade de bens, mas a perversidade humana. Pois, constatamos que os possuidores de bens em comum ou em indivisão têm entre eles conflitos muito mais frequentes que aqueles que têm os cidadãos cujos interesses são separados.”
Depois de ter criticado mais especificamente o comunismo de bens, Aristóteles critica à constituição de Platão uma lacuna que consiste em não determinar o estatuto político dos outros membros em geral da cidade (das outras classes sociais), em relação à comunidade de funções, de mulheres, de filhos e de bens. Sendo que a maioria dos membros da Polis platónica é composta pela massa de cidadãos não-guardiães (pense-se sobretudo nos agricultores), teria sido melhor que Platão se pronunciasse sobre se a comunidade de funções, de mulheres, de filhos e de bens podia também lhes interessar ou não. Mas, ele a deixa passar sob silêncio esta questão talvez por causa das dificuldades que ela levanta. À este propósito, Aristóteles afirma: “Contudo, que esta comunidade de mulheres, de bens seja necessária ao mesmo título tanto para os agricultores quanto para os guardiãs, ou que ao contrário ela não seja, com efeito, este ponto não foi de nenhuma maneira determinado, como também não o foram os problemas que lhe são ligados, como o de saber que papel político será reservado à classe dos agricultores, que educação e que leis lhes serão dadas.”
O silêncio de Platão em relação à classe dos agricultores é acompanhado dum certo privilégio excessivo que ele concede à classe dos guardiães. Este privilégio – sobretudo quanto as escolhas dos magistrados – Aristóteles qualifica-o de “exclusivismo”. Este pode constituir uma ameaça grave à unidade da comunidade política tão querida para Platão.

CONCLUSÃO

A reflexão sobre a crítica aristotélica da comunidade platónica de funções, de mulheres, de filhos e de bens ajudou-nos a aproximar alguns pontos essenciais do fim dum Estado e dos meios visando a realização desta finalidade.
Apesar dos seus limites, a constituição de Platão, baseando-se sobre o princípio da unidade como o maior bem da cidade, mete em relevo a necessidade de tomar a sério o princípio da unidade do Estado. Esta unidade é tanto mais necessária que o Estado deve sempre estar assente sobre a partilha dum mesmo território, duma mesma constituição e do que muitas vezes se chama símbolos nacionais. Estes elementos, mais outros, formam o que Eric Weil chamaria o sagrado duma comunidade. A corrupção deste sagrado arrastaria consigo a decomposição do Estado.
Exploramos também a pertinência da proposição de Platão no que concerne a comunidade de funções dos dois sexos. Esta parece-nos ser a semente duma abertura ao princípio da repartição das funções administrativas segundo o mérito e a competência.
A observação de Aristóteles, para quem o maior bem da comunidade é a amizade que se manifesta na solicitude e no amor cívico, ligado ao sentimento de propriedade e de afeição exclusiva, tem consequências pluridimensionais que mostramos durante o nosso percurso expositivo.
Pensamos ser oportuno assinalar que tanto o “comunismo” de Platão como a crítica “liberal” de Aristóteles visam o “maior bem da Polis”. Do nosso ponto de vista, o maior bem da Polis – quanto ao sujeito sobre o comunismo – é a procurar num equilíbrio (tensão) entre a partilha comum, da parte dos cidadãos, do mesmo território, da mesma constituição, dos mesmos símbolos nacionais, da mesma história nacional, da mesma estrutura legislativo-jurídica justa que tenha em conta os mais desfavorecidos; e a dinâmica liberal duma propriedade privada que necessariamente tem os seus efeitos (positivos) sobre o bem comum.
Assim, pensamos ainda que se deve tomar a questão platónica da comunidade de bens sob o aspecto do “bem comum”, negando o comunismo platónico de mulheres, de filhos e de bens, em nome da pluralidade de concepções da “vida boa”. Reconhecemos a necessidade de, num Estado, haver uma referência comum quanto à organização geral, que contudo deve dar aos indivíduos as liberdades necessárias para que eles possam viver segundo as suas concepções da vida boa.
Devemos sublinhar o limite da nossa abordagem da crítica aristotélica do “comunismo” de Platão, sobretudo no que concerne a classificação dos argumentos. É uma proposição que fizemos à partir da ideia principal de cada argumento, com o risco de reduzir o conteúdo dos argumentos críticos aristotélicos às designações que propusemos.


José Abel Moma
mjoseabel@yahoo.fr