Thursday, August 11, 2011

A CRÍTICA DE ARISTÓTELES AO COMUNISMO DE PLATÃO

INTRODUÇÃO

Neste artigo propomo-nos analisar a crítica aristotélica ao “comunismo” de Platão. Para tal, primeiramente tentaremos compreender o sentido e o alcance da proposição platónica duma comunidade de funções, de mulheres, de crianças e de bens. Estudaremos o livro V da “República” onde, na sua constituição ideal, Platão propõe o princípio da comunidade de funções, de mulheres, de crianças e de bens. Desenvolvendo a visão e os argumentos platónicos em favor deste princípio que chamaremos comunista, sublinharemos a preocupação política de Platão em dar à Polis a mais forte forma de unidade de interesses, como o maior bem para a Polis – Cidade/Estado.
Depois de ter compreendido a intenção e a extensão do “comunismo” de Platão, encetaremos o estudo da crítica aristotélica deste comunismo. Neste sentido, analisaremos o livro II da “Política”, onde Aristóteles estuda as constituições então existentes, inclusive a constituição platónica da “República”, para mostrar o que elas têm de correcto e de útil e o que elas encerram de defeito. O nosso estudo da crítica aristotélica do comunismo de Platão compreenderá três pontos: Em primeiro lugar, analisaremos a crítica de Aristóteles à comunidade platónica de funções entre os dois géneros; em segundo lugar tentaremos compreender a crítica aristotélica da comunidade de mulheres e de filhos, tendo o cuidado de mostrar a estrutura de cada argumento desta crítica; Finalmente, abordaremos a crítica aristotélica do comunismo platónico de bens. Neste último ponto, faremos alusão à censura que Aristóteles endereça à Platão pelo facto deste não ter determinado o estatuto político dos outros membros da Polis (sobretudo os lavradores) em relação ao seu comunismo.
Em guisa de conclusão, tentaremos mostrar a pertinência das duas perspectivas – a visão “comunista” de Platão e a crítica “liberal” de Aristóteles – vendo como estas duas perspectivas podem complementar-se em relação à intenção que elas têm: a de garantir o maior bem da Polis. É neste sentido que exploraremos o nosso ponto de vista quanto ao tema tratado no presente artigo.

I. O COMUNISMO DE PLATÃO
No livro V da “República”, Platão propõe a sua constituição ideal de acordo com a visão da justiça que ele desenvolve nos livros precedentes. Instantemente interrogado pelos seus interlocutores (entre os quais Adimante e Glaucon) sobre o género de comunidade a advogar entre os encarregados da Polis quanto às crianças, às mulheres, e quanto à primeira educação propriamente dita, Sócrates – aquele que podemos considerar o porta-voz de Platão – começa fazendo saber o porquê da sua hesitação ao responder à questão evoca a complexidade do problema. Segundo Sócrates, esta complexidade faz com que as pessoas não acreditem na possibilidade da realização desta comunidade nem na sua excelência. A justificação dada por Sócrates é seguida – sempre sob a forma de diálogo – da afirmação platónica da comunidade de funções entre os dois géneros, e da comunidade de mulheres e de crianças dos encarregados da Polis. Exploraremos num primeiro tempo estas duas afirmações que formam os pontos principais da constituição de Platão.

I.1. A COMUNIDADE DE FUNÇÕES DOS DOIS GÉNEROS
A constituição ideal de Platão, visando uma cidade justa, defende a comunidade de funções dos homens e das mulheres. Esta comunidade seria garantida por uma mesma educação dada aos dois géneros à partir do princípio segundo o qual entre os homens e as mulheres não há diferença de natureza quanto as aptidões técnicas.
Na República, Platão apresenta a sua visão comunista do governo da cidade, da seguinte maneira: “Em seguida, meu amigo, não há nenhum emprego concernente a administração da cidade que pertença à mulher enquanto mulher ou ao homem enquanto homem; ao contrário, as aptidões naturais são igualmente repartidas entre os dois géneros, e é conforme a natureza que tanto a mulher quanto o homem participe à todos os empregos, embora em todos ela seja mais fraca que o homem.”
Desta citação tiramos não só a afirmação platónica da comunidade de funções, mas também a sua justificação argumentativa. O argumento que citamos faz seguimento à comparação que Platão estabelece entre as cadelas e os cães que devem preferivelmente cooperar na caça e fazer o resto em comum, em vez das cadelas ficarem no canil sob pretexto de terem de parir e alimentar os cachorros. Desta comparação Platão conclui que a mulher e o homem têm a mesma natureza quanto a aptidão de tomar conta da cidade, pese embora o facto da mulher ser mais fraca que o homem. Mas, o aspecto de fraqueza, Platão o encontra também entre os homens do mesmo sexo, visto que há homens mais fracos que os outros e mesmo mais fracos que algumas mulheres. Assim, para Platão, dever-se-ia escolher mulheres semelhantes aos guerreiros da cidade para que elas possam viver com eles e com eles guardar a cidade. Eis declarada a comunidade de funções na cidade “justa” de Platão.
Para que a sua comunidade seja efectivamente realizável, Platão propõe o que podemos chamar a uniformidade da educação: “Portanto, se nós exigimos às mulheres os mesmos serviços que aos homens, devemos formá-las nas mesmas disciplinas.” Esta formação, essencialmente constituída pela música e pela ginástica, desenvolverá tanto nos homens quanto nas mulheres aptidões naturais para se tornarem encarregados da cidade. As mulheres assim escolhidas, tendo em conta as suas aptidões de serem encarregadas da cidade, serão também dadas para companheiras e colaboradoras dos encarregados da cidade (os guardiães).
Deste modo, com Platão o factor sexo deixa de ser um factor determinante na repartição das funções administrativas. O único factor determinante é a aptidão de cada ser humano. Neste sentido, Platão faz cair o monopólio do homem quanto ao governo-protecção da cidade. Dito isto, podemos passar à afirmação, em Platão, da comunidade de mulheres, de crianças e de bens.

I.2. A COMUNIDADE DE MULHERES, DE FILHOS E DE BENS.

A comunidade de mulheres e de filhos pode também ser chamada comunidade de família. Esta é a consequência da comunidade de funções dos dois géneros na medida em que este tipo de comunidade tem implicações na organização da família. Assim, Platão decreta que as mulheres e os filhos devem ser comuns à todos os guardiães: “As mulheres dos nossos guardiães serão comuns todas à todos: nenhuma delas habitará em particular com um deles; mesmo os filhos serão comuns, e os pais não conhecerão os seus filhos nem estes os seus pais.” Com este decreto, Platão elimina da sua “República” a forma normal da família restrita. Este decreto é a manifestação duma necessidade consequencial que decorre do facto que tendo as mesmas funções, as mesmas casas, partilhando as mesmas refeições e tendo a mesma educação, os homens e as mulheres serão naturalmente levados a formar uniões. Eis como Platão escreve: “Ora aqueles e aquelas que terás escolhido, tendo casa comum, tomando em comum suas refeições e não possuindo nada em próprio, estarão sempre juntos; e encontrando-se misturados nos exercícios do ginásio e em todo o resto da educação, eles serão trazidos por uma necessidade natural, penso eu, a formar uniões.”
Para realizar esta comunidade de mulheres e de filhos, deve-se facilitar e tornar frequentes as relações entre os homens e as mulheres guardiães que formam a elite da cidade. Daí a necessidade da instituição das festas que servirão também à reunião dos noivos.
Desta comunidade decorre uma espécie de “anonimato” que torna quase impossível a distinção das crianças. Assim, todos os filhos que nasceram no período em que os seus pais davam filhos à cidade tratar-se-ão de irmãos e irmãs, mas não conhecerão os seus verdadeiros pais.
Esta visão comunitária platónica da vida na cidade é sustentada por uma certa concepção “elitista” que se descobre na “República”. Com efeito, Platão preocupa-se em conservar a pureza da elite (guardiã) encorajando os casamentos comuns entre esta classe e excluindo desta esfera aqueles que, por natureza e por educação, não têm as mesmas aptidões. Isto é de tal maneira claro em Platão que podemos classificá-lo de “eugenista”.
Esta comunidade de funções, de mulheres e de filhos implica uma comunidade de bens, que, segundo Platão, torna a cidade mais unida e impede nela a divisão: “Então não tenho razão de afirmar que as nossas disposições anteriores, com aquelas que nós acabamos de tomar, farão deles, ainda mais, verdadeiros guardiães, e impedir-lhes-á de dividir a cidade, o que aconteceria se cada um não chamasse seu as mesmas coisas, mas coisas diferentes; se, habitando separadamente, eles tirassem das suas casas respectivas tudo do qual eles podiam assegurar-se a possessão para eles só; e se, tendo mulheres e filhos diferentes, eles criassem gozos e penas pessoais – enquanto com uma crença idêntica no tocante ao que lhes pertence, eles teriam os mesmos objectivos e sentiriam, na medida do possível, as mesmas alegrias e as suas dores?”
O parágrafo que acabamos de citar manifesta uma passagem – quanto ao argumento de Platão – à um outro nível. Do simples argumento sobre a possibilidade e a realização da comunidade de funções, das mulheres, das crianças e dos bens, Platão passa ao argumento sobre a desejabilidade, ou seja as vantagens, duma tal comunidade para a constituição da cidade justa.
Ao lado da mais forte união que a comunidade de bens oferece, assinale-se também o respeito das pessoas mais velhas, sendo que elas serão considerados pais anónimos ou não-distintos: “Assim, também os jovens não tentarão, sem uma ordem dos magistrados, usar de violência para com os mais velhos nem bater-lhes; eles não os ultrajarão, penso eu, de maneira nenhuma, pois dois guardiães bastarão para os impedir: o temor e o respeito; o respeito mostrando-lhes um pai na pessoa que eles quererão bater, o temor fazendo-lhes apreender que os outros virão em auxílio da vítima, alguns na qualidade de filhos, outros na qualidade de irmãos ou de pais.”

Esta visão comunista de Platão será posta em questão por Aristóteles para quem o maior bem da cidade é amizade cívica que supõe a pluralidade e a propriedade.


II. A CRÍTICA ARISTOTÉLICA DO COMUNISMO DE PLATÃO

No livro II da “Política”, Aristóteles propõe-se estudar a forma de comunidade mais perfeita, começando por uma análise das constituições já existentes, com vista a identificar o que elas têm de correcto e de útil, mas também o que elas têm de defeito. Assim, examinando a constituição ideal de Platão – a que ele nos propõe na República –, Aristóteles critica em primeiro lugar a visão comunista que Platão exprimiu na sua constituição. Com efeito, embora reconheça a impossibilidade de nada haver em comum na cidade, pois ao menos a constituição ela mesma e o território devem ser uma espécie de propriedade comum para que possamos falar de Polis, Aristóteles empreende uma análise da constituição platónica da “República” que proclama a possessão comum das funções, mulheres, filhos e bens.
II. 1. A CRÍTICA ARISTOTÉLICA DA COMUNIDADE DE FUNÇÕES
Quanto à comunidade de funções dos dois géneros, vimos que Platão a estabelece à partir duma reflexão sobre a natureza do homem e da mulher. Esta reflexão baseia-se numa comparação dos homens aos animais. Para Aristóteles esta comparação platónica não é sã e arrasta consigo um equívoco, pois o que nos animais não é contra a natureza pode sê-lo no género humano. Isto quer dizer que não há uma identidade perfeita entre a natureza do animal e a do homem sobretudo porque Aristóteles compreende o homem como animal racional: “É igualmente absurdo empregar a comparação tirada dos animais selvagens para mostrar que as mulheres devem ter as mesmas ocupações que os homens”
Para além disso, para Aristóteles, as virtudes dos homens são claramente diferentes das virtudes das mulheres, quer dizer que cada género tem as suas próprias virtudes que não devem ser confundidas. Esta concepção aristotélica é contra a comunidade de funções entre os dois géneros proposta por Platão.
Portanto, quanto à comunidade de funções entre os géneros, há em Platão e Aristóteles duas concepções antropológicas diferentes. É a partir da concepção antropológica do homem e da mulher, que extraímos do livro I e II da “Política”, que quisemos compreender a pertinência e o alcance da crítica aristotélica ao tipo de comunidade platónica.

III. 2. A CRÍTICA ARISTOTÉLICA DA COMUNIDADE DE MULHERES E DE FILHOS

Queremos aqui compreender a crítica de Aristóteles à comunidade platónica de mulheres e de filhos tentando analisar os diversos argumentos que Aristóteles nos propõe no seu livro II da “Política”.
- Primeiramente, encontramos na crítica de Aristóteles o argumento que nós preferimos chamar “lógico”. Com efeito, considerando a mais forte forma de unidade de interesses, que decorre da comunidade de mulheres, de filhos e de bens em geral, como “maior bem para a cidade” e seu ideal; a prova que Platão dá desta unidade não é sustentável logicamente nem sociologicamente. Com efeito, se “todos” os cidadãos da República devem ser capazes de dizer ao mesmo tempo: “esta mulher (esta criança) é minha e não é minha”, o termo “todos” encerra um equívoco. Se a palavra “todos” é tomada na sua distribuição individual, cada cidadão pode dizer da mesma mulher ou da mesma criança: “minha mulher”, “meu filho”, e é este o verdadeiro sentido da propriedade. Todavia, na realidade, o “todos” em Platão não é tomado no “sentido distributivo”, mas “colectivo” da totalidade dos indivíduos, de tal sorte que, na verdade, ninguém pode dizer duma mulher e duma criança que ela lhe pertence em próprio:
“Com efeito, a palavra todos apresenta uma ambiguidade. Se ela significa cada indivíduo tomado distributivamente, então o estado de coisas que Sócrates deseja criar teria talvez mais possibilidades de ser realizado (…). Mas, na realidade (…) a palavra todos designa-os todos colectivamente (…); é à todos colectivamente que estes bens pertencem, e não à cada um deles individualmente.”
Dito isto, vemos que a “tomada individual” do todos, na sua distribuição é irrealizável, enquanto a sua “tomada colectiva” – aquela efectivamente visada por Platão – não faz justiça ao objectivo de Platão que era o acordo dos cidadãos na afirmação ao mesmo tempo do meu e do não meu.
- Em segundo lugar, queremos extrair o argumento sobre a finalidade do Estado (argumento “teleológico”). Para Platão, a comunidade ou a “unidade mais forte possível” constitui o maior bem da cidade. É esta a afirmação de base que sustenta toda a proposição “comunista” de Platão. Ora, para Aristóteles, o comunismo unificador de Platão traz consigo a ruína do estado. Pois o estado é por natureza uma pluralidade. Aristóteles critica o princípio da unidade da cidade, como foi compreendido por Platão, porque ele destrói a pluralidade, que constitui a natureza mesma do Estado. Se o Estado é por natureza pluralidade, e o bem de uma coisa é o que permite a conservação da mesma, então a unidade não pode constituir o maior bem da Polis. «É evidente que o processo de unificação prosseguido com muito rigor, não haverá mais Estado, pois a cidade é por natureza a pluralidade e levando muito longe a sua unificação tornar-se-á família e de família, individuo.»
- Em terceiro lugar queremos reflectir sobre o argumento que nós chamamos “económico”. Para Aristóteles, a independência e a auto-suficiência económica prende-se muito com a pluralidade e a diversidade dos membros dum todo. Donde a família basta-se mais facilmente que um indivíduo, e o mesmo acontece com a cidade em relação à família.
Segue-se que a procura da unificação excessiva da Polis através do comunismo platónico é criticada por Aristóteles: «portanto, se devemos preferir o que possui uma maior independência económica; um grau mais fraco de unidade é também preferível à um grau mais elevado.» Vemos aqui que o que é importante para Aristóteles não é a unidade absoluta e excessiva da Polis, mas sim a sua independência económica, que se torna possível e assegurada pela pluralidade e a diversidade dos membros que constituem a cidade.
- Em quarto lugar, queremos reflectir sobre o argumento que designamos de “psicológico-afectivo”. A doutrina platónica da comunidade de mulheres e de filhos encerra um certo anonimato na relação “homem-mulher”, “pais-filhos” que implica um descompromisso prático nas relações afectivas de uns em relação aos outros, pois, como diz a sabedoria dos antigos “a coisa pública é coisa de ninguém”. Assim, ninguém se preocupará, por exemplo, dos filhos de todo o seu coração. Com efeito, na “República” de Platão, qualquer um (entenda-se da classe dos guardiães) torna-se pai, filho, mulher ou homem (esposo) de qualquer um. Nestas circunstâncias, «desde que pensemos que um outro se ocupa duma coisa, somos levados à negligenciá-lo muito mais.»
- Em quinto lugar, temos o argumento que chamamos “sociológico”. Efectivamente, o “comunismo” de Platão tem como consequência gerar uma certa confusão a propósito do parentesco recíproco. Vista a semelhança entre alguns cidadãos, as pessoas serão naturalmente levadas a procurar nas pessoas que se assemelham uma relação de parentesco. Neste sentido, Aristóteles diz que “não é possível evitar que certas pessoas suspeitem algumas outras de serem seus próprios irmãos ou seus próprios filhos ou seus próprios pais ou mães, pois as semelhanças que existem entre as crianças e os seus pais fornecem necessariamente índices justificando a crença num parentesco recíproco.”
- Em sexto lugar, queremos falar do argumento “jurídico”. Com a eliminação da família, consequência da comunidade de mulheres e de filhos, Platão acreditava que ele iria garantir o desaparecimento dos delitos de impureza que provêm da relação doméstica familiar. Para Aristóteles, as disposições comunistas de Platão trazem consigo consequências contrárias àquelas que ele tinha previsto. Pois, ao invés de respeitar todo mundo como pais, todo o mundo será estrangeiro, sendo que não haverá mais relações de parentesco: “é mesmo inevitável que estes delitos [violações de piedade] se produzam mais frequentemente quando as relações de parentesco são ignoradas que quando elas são conhecidas; e uma vez consumadas, a possibilidade de recorrer à expiações legais não joga que quando o parentesco é conhecido”
- Em sétimo lugar, temos o argumento que chamamos “antropológico”. Este argumento consiste em condenar uma espécie de incesto não consumado. Aristóteles pensa que não há sentido de privar os amantes de toda a relação carnal, enquanto se permite o amor e as familiaridades entre pai e filho e entre os irmãos. Segundo Aristóteles, é sobretudo esta última relação que é condenável e que deveria ser proibida pelo facto mesmo de se tratar de relações entre pai e filho ou entre irmãos: “é ainda absurdo que depois de ter estabelecido a comunidade de filhos, contentemo-nos de privar os amantes de todo comercio carnal, sem proibir o amor nem as outras familiaridades, que entre pai e filho ou entre irmão e irmão são tudo o que há de mais chocante, pois no caso deles o simples amor é já condenável.”
- Em oitavo lugar, falaremos do argumento que nós chamamos “legislativo”. Com efeito, se leis justas e correctas geram situações justas e correctas, as leis de Platão que se baseiam na sua comunidade de mulheres e de filhos trazem consigo um estado de coisas que mete em questão a justiça e o sentido mesmo destas leis. Assim, se para Platão, o maior dos bens é a unidade e essa decorre da amizade, como, segundo Aristóteles, Platão ele mesmo o reconhece; as leis comunistas de Platão pecam na sua vontade de realizar o que elas querem, pois a comunidade desfaz a amizade: «nós estimamos (…) que a amizade é o maior dos bens para as cidades (…), e Sócrates louva como estando acima de tudo a unidade do Estado, a unidade que parece ser, como ele mesmo o declara, uma criação da amizade, (…) na cidade platónica, sob o efeito da comunidade da qual queremos nos gratificar, é inevitável que a unidade se dilua e que o pai não possa mais dizer de maneira nenhuma: meu filho, ou o filho: meu pai.»
Depois de termos extraído estes argumentos, devemos agora dizer que todos os argumentos de Aristóteles decorrem da sua concepção antropológica e política do ser humano que lhe permite afirmar a primazia da “amizade” como o bem maior da sociedade em relação à “unidade”. Para Aristóteles, é de preferência a solicitude mútua e o amor que devem construir a unidade da sociedade, e não o comunismo que exactamente impede o surgimento e o desenvolvimento da solicitude e do amor: “Há no homem, dois móbeis predominantes de solicitude e de amor: o sentimento da propriedade e a afeição exclusiva; ora nenhum destes móbeis encontra lugar num Estado destes, constituído [pela comunidade de mulheres, de filhos e de bens].”

II. 3. A CRÍTICA ARISTOTÉLICA DO COMUNISMO PLATÓNICO DE BENS

Sobre o comunismo de bens, proposto por Platão na “República”, Aristóteles reafirma a sua concepção da cidade como pluralidade. É esta pluralidade que, através da educação, deve chegar à uma comunidade ou unidade que não seja absoluta, pois o excesso de unidade pode corromper o Estado. Esta reafirmação é sustentada, a nosso aviso, por três argumentos que vamos agora revelar.
- Ao primeiro argumento chamamo-lo “metodológico”. À este propósito, Aristóteles critica Platão pelo facto de não ter mostrado os limites da sua proposição da comunidade de bens. Com efeito, Platão faz referência somente às vantagens do seu comunismo constitucional, enquanto o rigor e a humildade dum trabalho filosófico exigem também que reflictamos sobre os limites do nosso trabalho: “Seria justo indicar não somente os males dos quais os homens serão livrados adoptando a comunidade de bens, mas também as vantagens das quais eles estarão privados; ora é manifesto que o tipo de vida que eles deveriam levar é absolutamente intolerável.”
- O segundo argumento é de ordem “ética”. Por este argumento, Aristóteles mostra que a comunidade de bens impede o exercício da “moderação” e da “liberalidade”. A moderação prende-se com as mulheres, na medida em que o homem seria capaz de evitar e não procurar a mulher do outro. Esta virtude é alargada aos bens de maneira geral. Quanto à liberalidade, ela refere-se ao emprego dos bens, na medida em que o homem seria generoso na sua capacidade de oferecer o que lhe pertence. “Juntemos à isto o facto que assim se reduz à nada (…) o exercício de duas virtudes, em primeiro a moderação no que concerne as mulheres (…) e seguidamente a liberalidade no emprego dos bens.”
- O terceiro argumento está ligado àquilo que podemos chamar o argumento “antropológico-jurídico”. Propondo a sua comunidade de bens, Platão explica os males que roem os outros Estados pelo facto deles não legislarem, como ele, uma propriedade comum de bens. Aristóteles critica esta posição de Platão, pois, para ele, os males dos quais Platão fala – por exemplo os problemas jurídicos de contratos, bajulações dos opulentos – não se prende com a falta de comunidade de bens, mas sobretudo com a perversidade humana ela mesma: “A legislação platónica é de aspecto sedutor, e pode parecer inspirada pelo amor do género humano. Com efeito, aquele que o escuta expor acolhe-o com satisfação (…), sobretudo quando ele escuta atribuir os males existentes actualmente nos Estados ao facto que aí os bens não são postos em comunidade (…). Na realidade estes males não têm nunca como causa o defeito de comunidade de bens, mas a perversidade humana. Pois, constatamos que os possuidores de bens em comum ou em indivisão têm entre eles conflitos muito mais frequentes que aqueles que têm os cidadãos cujos interesses são separados.”
Depois de ter criticado mais especificamente o comunismo de bens, Aristóteles critica à constituição de Platão uma lacuna que consiste em não determinar o estatuto político dos outros membros em geral da cidade (das outras classes sociais), em relação à comunidade de funções, de mulheres, de filhos e de bens. Sendo que a maioria dos membros da Polis platónica é composta pela massa de cidadãos não-guardiães (pense-se sobretudo nos agricultores), teria sido melhor que Platão se pronunciasse sobre se a comunidade de funções, de mulheres, de filhos e de bens podia também lhes interessar ou não. Mas, ele a deixa passar sob silêncio esta questão talvez por causa das dificuldades que ela levanta. À este propósito, Aristóteles afirma: “Contudo, que esta comunidade de mulheres, de bens seja necessária ao mesmo título tanto para os agricultores quanto para os guardiãs, ou que ao contrário ela não seja, com efeito, este ponto não foi de nenhuma maneira determinado, como também não o foram os problemas que lhe são ligados, como o de saber que papel político será reservado à classe dos agricultores, que educação e que leis lhes serão dadas.”
O silêncio de Platão em relação à classe dos agricultores é acompanhado dum certo privilégio excessivo que ele concede à classe dos guardiães. Este privilégio – sobretudo quanto as escolhas dos magistrados – Aristóteles qualifica-o de “exclusivismo”. Este pode constituir uma ameaça grave à unidade da comunidade política tão querida para Platão.

CONCLUSÃO

A reflexão sobre a crítica aristotélica da comunidade platónica de funções, de mulheres, de filhos e de bens ajudou-nos a aproximar alguns pontos essenciais do fim dum Estado e dos meios visando a realização desta finalidade.
Apesar dos seus limites, a constituição de Platão, baseando-se sobre o princípio da unidade como o maior bem da cidade, mete em relevo a necessidade de tomar a sério o princípio da unidade do Estado. Esta unidade é tanto mais necessária que o Estado deve sempre estar assente sobre a partilha dum mesmo território, duma mesma constituição e do que muitas vezes se chama símbolos nacionais. Estes elementos, mais outros, formam o que Eric Weil chamaria o sagrado duma comunidade. A corrupção deste sagrado arrastaria consigo a decomposição do Estado.
Exploramos também a pertinência da proposição de Platão no que concerne a comunidade de funções dos dois sexos. Esta parece-nos ser a semente duma abertura ao princípio da repartição das funções administrativas segundo o mérito e a competência.
A observação de Aristóteles, para quem o maior bem da comunidade é a amizade que se manifesta na solicitude e no amor cívico, ligado ao sentimento de propriedade e de afeição exclusiva, tem consequências pluridimensionais que mostramos durante o nosso percurso expositivo.
Pensamos ser oportuno assinalar que tanto o “comunismo” de Platão como a crítica “liberal” de Aristóteles visam o “maior bem da Polis”. Do nosso ponto de vista, o maior bem da Polis – quanto ao sujeito sobre o comunismo – é a procurar num equilíbrio (tensão) entre a partilha comum, da parte dos cidadãos, do mesmo território, da mesma constituição, dos mesmos símbolos nacionais, da mesma história nacional, da mesma estrutura legislativo-jurídica justa que tenha em conta os mais desfavorecidos; e a dinâmica liberal duma propriedade privada que necessariamente tem os seus efeitos (positivos) sobre o bem comum.
Assim, pensamos ainda que se deve tomar a questão platónica da comunidade de bens sob o aspecto do “bem comum”, negando o comunismo platónico de mulheres, de filhos e de bens, em nome da pluralidade de concepções da “vida boa”. Reconhecemos a necessidade de, num Estado, haver uma referência comum quanto à organização geral, que contudo deve dar aos indivíduos as liberdades necessárias para que eles possam viver segundo as suas concepções da vida boa.
Devemos sublinhar o limite da nossa abordagem da crítica aristotélica do “comunismo” de Platão, sobretudo no que concerne a classificação dos argumentos. É uma proposição que fizemos à partir da ideia principal de cada argumento, com o risco de reduzir o conteúdo dos argumentos críticos aristotélicos às designações que propusemos.


José Abel Moma
mjoseabel@yahoo.fr

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