Thursday, August 11, 2011

REDESCOBRINDO O DIREITO NO PENSAMENTO DE JURGËN HABERMAS


Em Habermas, a problemática do direito coloca-se à partir da interrogação sobre os meios de fundação de sociedades democráticas, estáveis e justas num mundo actual pós-metafísico, pós-capitalista e sempre moderno. Para Habermas, a formação das sociedades democráticas estáveis e justas passa pela promoção duma democracia radical. O fundamento desta democracia está no direito ou no sistema legal. Com efeito, para Habermas, o direito constitui a categoria da mediação social entre a factualidade e a validade. Isto quer dizer que a democracia reenvia ao jurídico que deve ser explicitado à partir duma reconstrução racional do direito.
Sendo que vivemos num mundo onde as diferenças sociais são cada vez mais profundas, um mundo da pós-guerra fria, um mundo de guerras étnicas, nacionais e religiosas, um mundo onde as chantagens nucleares apresentam-se cada vez mais ameaçadoras, manifesta-se necessário reconstruir a ordem social.
Assim, Habermas demonstra que as filosofias anteriores à sua têm sido insuficientes nas suas abordagens das sociedades complexas e modernas. Com efeito, Kant, com a sua razão prática, conseguiu colocar bem a questão da razão, mas esta é uma razão que não comunica. Com a razão prática kantiana, a verdade coloca-se como sendo interna ao sujeito agente: o universal provém dum julgamento individual.
Do mesmo modo, Hegel, tanto nas sua lições sobre a filosofia da história quanto nos seus princípios da filosofia do direito, colocou o primado do Estado. O perigo desta posição consiste no facto dela poder levar ao totalitarismo, visto que o indivíduo não tem verdadeiramente direito à expressão, pois ele faz parte dum todo que é o Estado e é somente nele que o indivíduo é livre.
O contextualismo, defendendo a força normativa dos factos, renuncia à qualquer fundação. Nestes termos ele também não é convincente. Por sua vez, o psicologismo não satisfaz, pois ele proclama a consciência (individual) como o lugar de legitimidade.
Neste quadro, Kant, Hegel e o contextualismo são insuficientes porque suprimem a tensão existente entre a factualidade e a validade. O psicologismo – pondo a autonomia da consciência e o encerramento reflexivo do sujeito sobre si mesmo – não respeita a tensão, quer dizer a intencionalidade própria da consciência, afirmada por Husserl: “a consciência é sempre consciência de alguma coisa.”
Na esteira da crítica husserliana, encontramos também Frege e outros filósofos analíticos à quem devemos a consideração do pensamento como uma proposição que exprime alguma coisa, um sentido, e que se expõe à intercompreensão. Se a linguagem constitui um meio de compreensão, o direito é, para a sociedade, a categoria de integração social, ele é o meio da coesão social.
Contudo, nas sociedades actuais manifesta-se um certo desencanto sociológico a propósito do direito. Este parece não mais ser uma força integrativa e tende a ser substituído pelo dinheiro, a burocracia, os conjuntos sistemáticos, etc. Assim, há concepções sociológicas do direito que devem ser ultrapassadas, pois elas ignoram e suprimem a tensão essencial entre a factualidade e a validade.
Entre as concepções sociológicas do direito temos a concepção naturalista do direito. Esta assimila o direito aos costumes, hábitos e mesmo às tradições; A concepção racionalista do direito mete o acento sobre as normas em detrimento do contexto das particularidades; A concepção contratualista do direito, proposta por Locke, Rousseau, Kant, etc. considera o direito como um “epifenómeno” que vem se juntar à essência mesma do homem; A concepção marxista limita o direito à produção e à relação entre a superstrutura e a infra-estrutura, os burgueses e proletários.
Para além destas concepções sociológicas do direito, há uma concepção estruturalista do direito, proposta por Niklas Luhmann. Para este autor, visto que vivemos num mundo quebrado, um mundo “sans feu ni lieu”, uma sociedade pluralista, o direito é o único meio de integração social. Contudo, segundo Habermas, em Niklas Luhamnn, a validade do direito permanece interna; ele considera o direito como um sistema autónomo e autopoiético. Uma tal concepção suprime também a tensão entre a factualidade e a validade.
Para Habermas, não são somente as concepções sociológicas que eliminam a tensão entre a factualidade e a validade. Com efeito, há também uma concepção filosófica do direito que se manifesta insuficiente. É o caso de John Rawls. Com efeito, a teoria da justiça deste autor deve ser distinguida em dois níveis que o próprio John Rawls confunde: há o nível da aceitabilidade e o nível da aceitação. A teoria da justiça de John Raws pode ser válida ao nível da aceitabilidade, mas isto não significa que ela seja aceite. Ela deve passar pelo crivo da discussão. Para Habermas, John Rawls ignora que a passagem da aceitabilidade à aceitação implica o princípio D (princípio da discussão): “são válidas estritamente as normas de acção sobre as quais todas as pessoas susceptíveis de ser implicadas duma maneira ou doutra poderiam meter-se de acordo enquanto participantes à discussões racionais.” Assim, para Habermas, não se deve suprimir a tensão entre a factualidade e a validade. Para o nosso autor, a validade do direito reside na razão comunicacional. Compreendendo o direito como sendo ao mesmo tempo um sistema de saber e um sistema de acção, ele pensa que a legitimidade do direito é fruto da discussão e que a relação entre o direito e a moral não deve ser concebida em termos de oposição ou em termos de repetição. Com efeito, é preciso ir para além mesmo de toda inspiração platónica que subordina o direito à moral e vice-versa. Os que agem desta maneira estabelecem uma hierarquia entre o direito e a moral. Ora, para Habermas, estes dois aspectos da realidade humana são equi-primordiais, quer dizer o direito e a moral são “co-originais”. Logo, não há diferença per se, a única distinção consiste no facto do direito ter força institucional enquanto a moral ser mais de uma força interior.
Neste sentido, Habermas propõe um novo paradigma do direito que retoma e ultrapassa os dois paradigmas que levaram o direito à uma crise. Com efeito, o paradigma liberal do direito tende à privilegiar os direitos dos indivíduos em detrimento dos direitos sociais. Da mesma maneira, o paradigma do Estado providência privilegia os direitos sociais em detrimento das liberdades individuais. Estes dois paradigmas criam um abismo entre o privado e o público.
Assim, Habermas propõe o paradigma processualista do direito. Este paradigma funciona como uma circularidade entre o privado e o público, promovendo a inclusividade. Com este paradigma, Habermas ultrapassa o modelo da justiça substantiva e propõe a justiça processualista.
Esta concepção do direito torna possível uma política deliberativa caracterizada por: afluxo de informações pertinentes, compromissos, regras de discussão racionais, submissão de tudo à uma discussão racional que leva à entendimentos, formação da opinião e vontade política através da discussão, intersubjectividade superior, poder comunicacional, vasta rede de consenso, sociedade civil e espaço público desempenhando o papel despertador e de problematização das situações da periferia, etc.
Quanto à nós, pensamos que a teoria de Habermas pode promover efectivamente a soberania popular e assim abrir o caminho à uma democracia radical caracterizada pela discussão racional manifesta no debate público, como o autor defende. Isso se torna um desafio para algumas sociedades actuais, mormente algumas africanas onde o poder dificilmente se emancipa e se apoia sobre uma legalidade constitucional que algumas vezes não é legítima porque não é fruto da aceitação que surge duma discussão alargada à toda sociedade. Mas, olhando para a nossa realidade, esta teoria poderia acusar um certo grau de utopia – porquanto a tecnicidade, que com o tempo envolveu a linguagem do debate político, infelizmente não está ao alcance de todos e os poucos que a alcançaram dificilmente dizem claramente a referência do seu discurso – se ela enquanto teoria filosófica não estivesse marcada, à meu ver, pela qualidade da IDEA, compreendida como um objectivo à alcançar, para o qual caminhamos, mas que podemos não atingir, consolando-nos a certeza da aproximação paulatina ao ponto desejado.


José Abel Moma

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