Thursday, August 11, 2011

A LIBERDADE NO PENSAMENTO POLÍTICO DO FILÓSOFO JOHN RAWLS E A SUA RELAÇÃO COM A INTUIÇÃO DE HANNAH ARENDT

INTRODUÇÃO

Na sua obra intitulada Liberalismo político, John Rawls tenta articular e tirar as consequências filosófico-políticas da questão concernente a possibilidade da existência duma sociedade justa e estável, constituída de cidadãos livre e iguais, embora profundamente divididos entre eles por causa das suas doutrinas compreensíveis e razoáveis (morais, filosóficas e religiosas), mas incompatíveis entre elas. Segundo Rawls, esta questão prende-se com o problema da justiça política. É assim que o Liberalismo político situa-se na esteira duma outra obra Teoria da justiça, onde Rawls desenvolve uma teoria da justiça como equidade. Esta, ultrapassando o utilitarismo, propõe uma concepção deontológica da justiça que afirma a prioridade do justo sobre o bem e define alguns princípios de justiça, visando a constituição duma “estrutura de base” social justa: o respeito das liberdades fundamentais; a igualdade de oportunidades e o princípio da diferença. Embora os tenha retrabalhado ulteriormente, na sua obra Teoria da justiça, Rawls apresenta estes princípios da seguinte maneira:
Em primeiro lugar: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais alargado de liberdades de base iguais para todos que seja compatível com um mesmo sistema de liberdades para os outros
Em segundo lugar: as desigualdades sociais e económicas devem ser organizadas de tal sorte que, ao mesmo tempo, (a) possamos razoavelmente esperar que elas possam ser vantajosas para cada um e (b) que elas sejam ligadas à posições e funções abertas à todos.
Na primeira lição, « ideias fundamentais », da primeira parte, « liberalismo político: contexto filosófico», da sua obra Liberalismo político, Ralws empreende uma reflexão sobre a compreensão política da pessoa e faz um estudo a propósito da concepção de pessoa livre. É à partir desta reflexão que quisemos extrair a significação do conceito de liberdade em Rawls, no seu contexto de reflexão em filosofia moral, política e social. Quisemos ler na obra deste autor o intuito de propor um quadro político e social onde os seres humanos possam exercer a sua liberdade. A proposição deste quadro não seria possível sem uma concepção prévia da liberdade humana. Esta será, para nós, o objecto de estudo deste artigo que apresentamos.
I. CLARIFICAÇÃO CONCEPTUAL E ARTICULAÇÃO DO ARTIGO
A concepção política rawlsiana define a pessoa como todo homem capaz de ser, durante toda a sua vida, um membro normal e plenamente cooperante da sociedade. A “pessoa é um ser que pode ser cidadão, quer dizer um membro normal e plenamente cooperante da vida social durante toda a sua existência.” Para compreender esta concepção, parece-nos imperioso, primeiramente dar conta da significação que Rawls dá ao conceito sociedade. Para este autor, a sociedade “é um sistema equitativo de cooperação entre as pessoas livres e iguais que são tratadas como membros plenamente cooperantes da sociedade durante toda a sua vida.” Esta definição da pessoa e da sociedade em Rawls apresenta-nos a pessoa como essencialmente um ser cooperante. O pano de fundo desta concepção encontra-se identificado com uma filosofia política que se situa na tradição do contrato social. Com efeito, para Rawls, a pessoa concebida como ser cooperante, é constituída por duas faculdades da personalidade moral: a capacidade de ser razoável e a capacidade de ser racional.
A faculdade de ser razoável consiste na capacidade de respeitar os termos equitativos da cooperação. Estes compreendem substancialmente as ideias de reciprocidade e de mutualidade. Mais precisamente, ser razoável significa ser capaz dum sentido da justiça, isto significa que a pessoa humana deve ser capaz de ter uma compreensão dos princípios de justiça, para os aplicar e deixar-se motivar por um desejo eficaz de acção à partir dos mesmos princípios e de acordo com eles enquanto termos equitativos de cooperação em sociedade.
A faculdade de ser racional é a capacidade de formar e de manter uma concepção do bem. Uma concepção do bem é a ideia que a pessoa tem a propósito duma vida humana que merece ser vivida, quer dizer a representação duma vida boa. Isto compreende um sistema definido de fins e de finalidades que podem ser prosseguidos individualmente ou colectivamente como objectivo de engajamento e de fidelidade. A concepção do bem comporta também a visão do mundo e da relação que a pessoa aí mantém.
Rawls propõe-nos uma concepção política da pessoa. Assim, ele apresenta-nos três aspectos da pessoa política livre. É livre aquele que:
- Possui a faculdade moral de formar uma concepção do bem;
- É fonte de revindicações válidas que se autenticam elas mesmas;
- É capaz de assumir a responsabilidade dos seus fins.
A partir destes princípios, podemos desenvolver os três elementos que constituem a liberdade, em relação à pessoa, no Liberalismo político de John Rawls.

I.1. A FACULDADE MORAL DE FORMAR UMA CONCEPÇÃO DO BEM

“Os cidadãos são livres no sentido em que eles consideram que eles mesmos, com toda outra pessoa, possuem a faculdade moral de formar uma concepção do bem.” Do seu ponto de vista, a liberdade requer o reconhecimento do direito da pessoa à ser considerada como independente de toda concepção particular do bem e consequentemente independente também do sistema de fins últimos que esta concepção compreende. A independência do indivíduo de toda concepção particular do bem decorre do reconhecimento da pessoa humana como sujeito duma autonomia racional. Esta é a prerrogativa da qual usufrui a pessoa humana enquanto ser racional, quer dizer enquanto ser que concebe uma vida boa. A autonomia tem aqui o sentido de aptidão a poder governar-se à si mesmo, a poder propor-se uma lei racional de conduta, etc. Assim, a pessoa humana é livre na medida em que ela pode efectivamente formar, rever e seguir, duma maneira racional, a sua própria concepção do bem. A formação duma concepção do bem pode também significar aqui a adesão ou identificação, sem nenhuma obrigação social, à uma concepção do bem já existente e partilhada.
A formação duma certa concepção do bem num momento dado da vida não impede a revisão desta concepção. A revisão ou reconsideração das concepções do bem pode ajudar o ser humano a confirmar a racionalidade das suas perspectivas, objectivos ou finalidades, e, se necessário, mudá-las. Daí a pessoa humana, pelo facto mesmo de ser livre, não está ligada à prossecução da concepção que ela formou ou à qual ele aderiu num momento dado da sua vida. Isto é devido ao que Rawls chama “identidade pública ou institucional”.
A identidade pública é aquela que é definida e descrita pela lei fundamental dum Estado, definindo os direitos e os deveres fundamentais da pessoa humana enquanto cidadã. Assim, por exemplo, a conversão à uma religião ou a mudança de religião não toca nem modifica a identidade constitucional duma pessoa que, ao contrário, permanece a mesma que antes.
Para além da identidade constitucional existe a identidade não-institucional ou moral. Esta é constituída pelos objectivos, finalidades e compromissos mais profundos dos cidadãos. Os objectivos e os compromissos dos cidadãos podem ser políticos ou não-políticos. Os objectivos políticos compreendem os valores da justiça política que os indivíduos podem ver realizados nas instituições políticas e nos programas sociais. Os objectivos e os compromissos não-políticos são assumpções dos valores da vida não-pública composta também pelos fins das associações às quais os indivíduos pertencem. Assim, os objectivos e os compromissos políticos e não-políticos determinam, influenciando o modo de vida dos indivíduos, quer dizer, a maneira como os indivíduos concebem o que eles fazem e realizam no contexto social.
Uma mudança é possível para a pessoa humana, quanto a sua identidade moral, mas isto não implica a mudança da sua identidade pública ou constitucional. No quadro da identidade pública ou constitucional, a conversão não encontra pertinência. O que pode acontecer é a mudança da lei fundamental que define os direitos e deveres fundamentais dum cidadão.
O desenvolvimento deste primeiro elemento da liberdade nos revela já o princípio da igualdade com a qual a liberdade se relaciona. Com efeito, os cidadãos que se consideram (como) livres o fazem enquanto eles consideram também os outros como possuindo a mesma faculdade moral de formar e prosseguir uma concepção do bem. Isto permite aos indivíduos de emitir as revindicações visando o progresso das suas concepções do bem.

I.2. FONTE DE REVINDICAÇÕES VÁLIDAS QUE AUTENTICAM ELAS MESMAS

A liberdade prende-se com as reclamações que as pessoas humanas fazem em relação às instituições afim de fazer progredir a sua concepção do bem. Assim, os cidadãos são livres “enquanto fontes de revindicações válidas que se autenticam elas mesmas.” A pessoa humana, sendo cooperante, é capaz de ter não somente uma concepção do bem, como também o sentido da justiça, quer dizer, ela é capaz de compreender, aplicar e agir a partir da concepção política da justiça que define os termos equitativos da cooperação. É no quadro desta concepção pública da justiça que a pessoa humana exerce a sua liberdade, exprimindo as suas revindicações em relação às instituições existentes para melhorar a sua concepção do bem.
A expressão de revindicações pode também se manifestar pela emissão de proposições. Com efeito, a pessoa humana é livre na sociedade, quando ela é capaz de propor, de dar a sua opinião a propósito das instituições existentes. As pessoas humanas, assim livres, consideram que as revindicações que elas fazem têm um valor nelas mesmas, enquanto elas provêm dum ser politicamente cooperante, gozando das duas faculdades já referidas.
É importante notar que este segundo aspecto da liberdade, como os outros, não é efectivamente exercido senão nas sociedades democráticas, tendo uma concepção política da justiça como equidade. Pois, numa outra sociedade, com uma concepção política diferente, as revindicações feitas pelos indivíduos não têm valor nelas mesmas. Assim, por exemplo, numa sociedade onde a escravatura é permitida, esta é uma condição que define a morte social do indivíduo. Com efeito, o escravo é um ser humano que não é considerado como fonte de revindicações em relação às instituições, pois esta prerrogativa lhe foi negada pelo facto mesmo de não ser livre.

I.3. A CAPACIDADE DE ASSUMIR AS RESPONSABILIDADES DOS SEUS FINS.

Este último aspecto está estritamente ligado à concepção rawlsiana da pessoa e da sociedade. Com efeito, as pessoas humanas são consideradas como seres capazes de se comprometer na cooperação social. Elas podem, consequentemente, assumir a responsabilidade dos seus fins. Seres cooperantes, numa sociedade cooperativa, as pessoas humanas podem também ajustar os seus fins, afim de poderem ser realizadas pelos meios que elas podem razoavelmente esperar obter como fruto de suas contribuições mútuas. Daí, as pessoas humanas são livres “em razão das suas capacidades de assumir a responsabilidade de seus fins, o que afecta a maneira como as suas diversas revindicações são avaliadas.”
Pensamos que esta característica da liberdade é particularmente ligada ao que Rawls chama “autonomia completa” em relação à “autonomia racional”. Com efeito, esta é a capacidade de agir a partir da faculdade da pessoa humana enquanto ser racional. Mas, esta autonomia não é suficiente para a realização da pessoa humana racional e razoável. À autonomia racional é preciso juntar a autonomia completa. Esta, mesmo compreendendo a capacidade de ser racional, é a capacidade de melhorar e de fazer progredir a sua concepção do bem duma maneira compatível com o respeito dos termos equitativos da cooperação: a reciprocidade e a mutualidade. Na sociedade onde os indivíduos são livres, cada um pode contar com o sentido da justiça do outro, orientar e revisar os seus fins à luz do que todos esperam em matéria de bens primários.
Deste ponto de vista, Rawls desenvolve cinco (5) categorias de bens primários: as liberdades de base, que são as condições institucionais subjacentes necessárias ao desenvolvimento e ao exercício consciente das duas faculdades morais. Elas são indispensáveis para proteger um certo número de concepções do bem nos limites da justiça pública; a liberdade de movimento e a livre escolha da sua ocupação num quadro de possibilidades diversas; os poderes e as prerrogativas das funções e dos postes de responsabilidade; as entradas/retornos e a riqueza; as bases sociais do respeito de si mesmo, necessárias para que os indivíduos tenham um sentido real do seu próprio valor enquanto pessoa e para que eles possam ser capazes de exercer as suas faculdades morais, e de fazer progredir os seus fins confiantes neles mesmos.

CONCLUSÃO

Quisemos explorar a concepção rawlsiana da liberdade. Esta pode ser compreendida como a faculdade humana de formar, revisar e prosseguir uma concepção do bem melhorando-a pelas revindicações válidas que se autenticam elas mesmas e realizando-as através de meios que podemos razoavelmente esperar obter da contribuição de todos os membros da sociedade.
A concepção rawlsiana da liberdade tem alguns traços comuns com a compreensão que Hannah Arendt tem da liberdade:
Primo, tanto para John Rawls como para Hannanh Arednt, a liberdade é do domínio político e dos “negócios humanos”. «A questão da política e o facto que o homem possui o dom da acção deve sempre ser apresentado ao nosso espírito quando nós falamos do problema da liberdade.»
Secundo, a liberdade é compreendida pelos dois autores, cada um na sua perspectiva, como um elemento necessário para que os homens possam viver juntos numa organização política. Hannah Arendt afirma que a liberdade, marcada pelo seu aspecto essencial da virtuosidade de execução, tem necessidade dos outros homens diante dos quais ela possa aparecer, se manifestar, quer dizer ela precisa dum espaço público. Este aspecto do espaço público é também assinalado por Rawls quando ele compreende a pessoa humana como ser cooperante, e a sociedade como sistema equitativo de cooperação entre pessoas livreS e iguais.
Notamos também que os dois autores refutam a identificação da liberdade ao livre arbítrio. Isto quer dizer que para os dois autores a liberdade é mais da ordem da acção e da palavra. O homem livre é aquele que age, que começa alguma coisa nova, que forma, revisa e prossegue uma concepção do bem; aquele que se mete de acordo com os princípios equitativos de justiça.
Apesar dos traços comuns explorados, que põem a liberdade no contexto da relação do ser humano com outrem, pensamos também que os dois autores se encontram em perspectivas e abordagens filosóficas diferentes:
John Rawls situa-se numa perspectiva liberal moderada e é levado por uma preocupação de propor uma teoria filosófico-política sobre a possibilidade duma sociedade justa e livre em condições marcadas por conflitos doutrinais profundos. É lá um retorno ao conceito da tolerância diante do pluralismo, afirmando a possibilidade de ser livre, apesar de nossa condição pluralista. Aí se apresenta o paradoxo da existência humana: liberdade e condição.
Hannah Arendt, por sua vez, pode ser situada numa perspectiva mais fenomenológica. Na sua abordagem há um retorno ao sentido mesmo original do fenómeno liberdade. Ela faz uma análise da manifestação da liberdade e tenta explicitar esta experiência tendo em conta o seu paradoxo em relação às suas condições. Num debate quanto a liberdade política e a liberdade interior, Hannanh Arendt demonstra-nos que o campo original da liberdade é a política.

José Abel Moma



John RAWLS, Théorie de la justice, Seuil, 1987, Paris, p. 91. «[En premier lieu: chaque personne doit avoir un droit égal au système le plus étendu de libertés de bases égales pour tous qui soit compatibles avec le même système pour les autres.
En second lieu : les inégalités sociales et économiques doivent être organisées de façon à ce que, à la fois, (a) l’on puisse raisonnablement s’attendre à ce qu’elles soient à l’avantage de chacun et (b) qu’elles soient attachées à des positions et à des fonctions ouvertes à tous.]»
* As traduções aqui apresentadas são da liberdade e responsabilidade do autor do artigo.
Idem, Libéralisme politique, PUF, 1995, Paris, p.43 «Personne est un être qui peut être citoyen, c’est-à-dire un membre normal et pleinement coopérant de la vie sociale pendant toute son existence. »
Ibidem, p. 33 «Est un système équitable de coopération entre les personnes libres et égales que l’on traite comme des membres pleinement coopérants de la société pendant toute leur vie.»
Ibidem, p. 55 “Les citoyens sont libres en ce sens qu’ils considèrent qu’eux-mêmes, comme toute autre personne, possèdent la faculté morale de former une conception du bien.”
Ibidem, p. 56 “l’identité publique ou institutionnelle”.
Ibidem, p. 58 “En tant que sources de revendications valides qui s’authentifient elles-mêmes.”
Ibidem, p. 60 “En raison de leur capacité à assumer la responsabilité de leurs fins, ce qui affecte la manière dont leurs diverses revendications sont évaluées.”
Hannah ARENDT, La crise de la culture. Huit exercices de pensée politique, Galllimard, 1972, Paris, p. 189. “La question de la politique et le fait que l’homme possède le don de l’action doit toujours être présenté à notre esprit quand nous parlons du problème de la liberté”.

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